Falar sobre água pode ser maçador. Escrever um pouco pior. Não obstante, a água é incontornável. Há frases que podem embelezar o discurso e são à moda de redes sociais, do tipo, “a água é o princípio de todas as coisas”. Há outras mais enigmáticas e com várias interpretações possíveis: o título do artigo é apenas um exemplo, i.e., pelo facto de aparentemente pouco ou nada se passar e poucas notícias haver sobre água (exceção para os desastres, nomeadamente inundações, ou, do outro lado, grandes ondas surfadas) não quer dizer que não sejam pungentes a cada dia que passa os desafios da água. Há ainda um terceiro tipo de fraseologia que pode ser interpelativa: “não deite fora um velho balde sem saber se o novo segura a água” (provérbio nórdico).

Num dos recentíssimos reports do World Economic Forum, ao caso sobre a água,«Harnessing the Fourth Industry Revolution for the Water» (Setembro de 2018), são apresentadas realidades e desafios da água mas, concomitantemente, formas de os ultrapassar usando tecnologias subjacentes à quarta revolução industrial: o que podem, efetivamente, fazer as tecnologias em favor da água? Serão baldes novos efetivamente capazes de segurar água ou ainda está por provar que possam substituir os velhos baldes que a vão segurando/gerindo? Vamos por partes.

O report abre, desde logo, as “hostilidades” com um conjunto de aspetos que reduzo ou transformo em tópicos iniciais:

  • Durante sete anos consecutivos os problemas da água foram classificados como estando entre os cinco principais fatores de risco global para o World Economic Forum;
  • Em 2018 e por entre os riscos globais percebidos como tendo maior probabilidade de se manifestar e comportando maior impacto sobre o mundo da próxima década todos, à exceção de um, estão ligados, ou podem estar, à água;
  • Durante os últimos anos, enquanto alguns riscos surgiram e desapareceram – crise financeira e algumas doenças crónicas – a água permaneceu pelo menos como um desafio (ou um conjunto de desafios) a resolver;
  • As questões da água são bem conhecidas e algum progresso foi conseguido. Porém, é dececionante ver que resolver os desafios da água continua a ser uma ilusão/quimera;
  • As abordagens “business-as-usual” não serão capazes de abordar os riscos apresentados pela insegurança da água;
  • As abordagens convencionais não bastam para sustentar a água do mundo;
  • Há avanços técnicos e novas capacidades emergentes via quarta revolução industrial (tecnologias) que podem importar, e muito, à resolução dos desafios da água mas que vêm, de alguma forma, perturbar o status quo reinante;
  • Cinco dos principais desafios da água devem ser tidos em consideração em ações/pensamentos/decisões futuros. Apresentam-se abaixo.

Desafio #1: Como gerir a escassez, a procura e a oferta global de água?

Verificar-se-á um gap de 40% entre o abastecimento global e as necessidades de procura de água até ao ano 2030. A oferta de água será, então, claramente insuficiente. Assim, a concorrência sobre recursos como a água irá subir, levando a que haja dificuldades acrescidas tanto no sector público como nas empresas, na sociedade civil, em geral, e em todos os ecossistemas.

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Desafio #2: Como disponibilizar acesso, com garantia da qualidade, à água, saneamento e serviços de higiene?

Atualmente, as estatísticas relativas ao acesso a água limpa revelam que 4 mil milhões de seres humanos vivem com escassez de água. Mais de 2 mil milhões vivem sem acesso a água potável e serviços de saneamento básico. As doenças transmitidas pela água matam, todos os anos, mais de meio milhão de pessoas, a maioria menores de 5 anos.

A entrega de água de qualidade é fundamental para o desenvolvimento humano e ambiental. A segurança é, consequentemente, crítica quando se tomam em consideração fatores como o crescimento populacional, o aumento da migração, a elevação dos níveis de urbanização, a crescente atividade económica e as mudanças climatéricas que, infelizmente e em conjunto, afetam os sistemas de água existentes e todas as infraestruturas.

Estima-se em 3 milhões de indivíduos o número dos que se deslocam todas as semanas para centros urbanos em todo o mundo. Assim, as necessidades urbanas de água (por aumento da pressão urbanística) e saneamento são desafiadoras e as infraestruturas, em muitos casos, estão ultrapassadas, envelhecidas e permitindo fugas várias, interrupções involuntárias e problemas de abastecimento.

Desafio #3: Pode-se obter uma imagem completa, atual e acessível da oferta e procura de água?

Entre os principais impulsionadores do gap estimado de 40% entre procura e oferta estão o crescimento económico, ao qual subjaz a procura de água, de energia e de alimentos. A população global está atualmente a crescer a 83 milhões de pessoas por ano. Em 2050 projeta-se atingir uma população global de 9,8 mil milhões de pessoas, dos quais 2/3 viverão em cidades.

Um dos resultados da crescente urbanização é o aumento consequente da industrialização que trás, em paralelo, elevação do consumo de água, em particular no setor da energia e em setores como a agricultura, o processamento de alimentos e bebidas, a fabricação em geral e o setor mineiro.

As economias emergentes e a transição de populações de baixos para médios rendimentos acarretam, também, uma mudança de hábitos e dietas alimentares, intensificando as necessidades de proteína. Ora este fenómeno vem colocar ainda mais pressão sobre os recursos hídricos para conseguir responder às necessidades e tipologias da produção agrícola.

Desafio #4: Como assegurar a qualidade da água?

Embora a atenção do público em geral se concentre na disponibilização da água, o mundo enfrenta, igualmente, uma crise de qualidade dessa mesma água. Aos dias de hoje apenas 20% das águas residuais são tratadas adequadamente antes de descarregadas nos locais que as recebem, degradando ecossistemas naturais, causando doenças (transmitidas pela água) ou infiltrando-se em aquíferos que comprometem mais ainda a disponibilidade de água com qualidade.

Note-se que 21 dos 37 maiores aquíferos do mundo estão em declínio e em situação crítica. Não há grande margem para continuar a degradar mais água em boas condições. Para além da melhoria das condições de segurança impõe-se a manutenção da integridade das fontes de abastecimento, sejam quais forem.

Desafio #5: Como construir resiliência às mudanças climatéricas?

60% da população mundial vive em áreas em grande stress hídrico. Isto inclui quase todos os países do Sul da Ásia, do Médio Oriente e do Norte de África. Frequentes eventos climatéricos extremos, de enchentes a secas, ameaçam o regular abastecimento de água, interrompendo a continuidade da economia mundial. Eventos deste tipo podem provocar no Médio Oriente ou em África perdas de até 6% no seu Produto Interno Bruto anual próximo do ano 2050. Isto por via de problemas agrícolas, questões de saúde e perdas de rendimentos. A palavra crítica passa a ser resiliência uma vez que as perdas originadas anualmente são francamente elevadas.

Como podem então as tecnologias e a quarta revolução industrial ajudar a resolver estes desafios? É certo que não irão trazer, por milagre, mais água, tout court. Porém, podem apoiar e constituir importantíssimos aliados na resolução destes desafios.

Em primeiro lugar os esforços que estão a ser feitos no sentido de fazer levantamentos periódicos de rios, reservatórios, lagos e oceanos é enorme. Em 2021 haverá uma cobertura de 90% da terra via satélite (NASA/França) o que pemitirá mapear quase todas as origens da água duas vezes a cada vinte e um dias. Depois, a monitorização satélite permitirá mapear deformações terrestres e preencher lacunas sobre o conhecimento das origens subterrâneas. Se a isto juntarmos sensores virtuais (soft sensors) que, associados a sensores físicos irão ajudar, via algoritmia e inteligência artificial, ao, por dedução, processamento de informação de várias máquinas de forma a determinar outputs físicos reais talvez estejamos mais próximos de “dominar e gerir” as origens das águas e ajudar, em parte, ao desafio #1.

Em segundo lugar, haverá certamente novos modelos de negócio despoletados pela necessidade de conferir qualidade à água. Estes modelos de negócio irão usar sensores remotos e monitorização via IoT (Internet of Things) para detetar e reparar fugas e garantir qualidade. A par, será certo, com inteligência artificial e machine learning para trabalhar dados históricos e prever de forma mais simples riscos infraestruturais e executar planos de substituição melhorando, por comparação, estruturas de capitais, receitas, custos operacionais e serviços prestados face a modelos de negócio mais convencionais. Se a isto juntarmos tecnologia blockchain para poder registar informações sobre qualidade da água de uma forma descentralizada e transparente e evitando adulteração por terceiros estar-se-á a contribuir, e muito, para dominar o desafio #2.

Em terceiro lugar a sensorização (imagem satélite e drones), a Internet of Things e a inteligência artificial podem, conjuntamente, monitorar a saúdes dos vários sistemas de água (em qualidade e em quantidade) em geografias diferentes. A melhor perceção da qualidade e quantidade de água disponível pode, por sua vez, facilitar mecanismos de pricing da água mais dinâmicos e adaptados às suas próprias características, qualidades e origem, com particular destaque para as águas reutilizadas. Estar-se-á a contribuir, e muito, para se poder ter uma imagem mais completa e mais atual sobre o equilíbrio (desequilíbrio) oferta/procura. E, com isso, dar um passo grande para endereçar o desafio #3.

Em quarto lugar, e de novo, a sensorização permitirá coletar dados relativos ao fluxo, à qualidade e à quantidade de água. Essa informação, se comunicada via dispositivos IoT a uma rede crescente de objetos físicos com capacidades informacionais e internet-based pode facilmente (re)transmitir dados a plataformas amigáveis, como dispositivos móveis ou tablets. Esta sensorização permitirá, concomitantemente, deteção rápida de fontes de contaminação e possibilitando ações rápidas e decisivas. Estar-se-á a dar um grande passo no sentido de atacar o desafio #4.

Em quinto lugar, a tecnologia blockchain (e a transparência e eficiência que permite, bem como o alargamento ou dispersão do capital por muitíssimos investidores) pode desempenhar um papel importantíssimo na redução do risco associado a grandes projetos de investimento e tornar-se uma forma de levantamento de capital para contratos de qualquer duração mas, em particular, de longa duração. Imagens satélite, IoT, big data, IA podem ser usados para exploração de cenários e previsões futuras de forma a melhorar a resiliência aos vários níveis da sociedade, regional, nacional e infranacional. A utilização de sensores remotos para previsões de inundação e ferramentas de design abrangentes para modelação hidráulica estão entre os vários serviços que emergem para informar decisões de investimento em infraestruturas sobre planeamento urbano, por exemplo. A tecnologia habilitará a recolha e trabalho de dados sobre água por fontes díspares (big data) que poderão ser cruciais para estratégias que confiram mais resiliência e desenvolvimento de soluções em escala.  Desta forma estar-se-á a ir ao encontro do desafio #5.

É certo que não existem grandes certezas sobre se estes novos “baldes” seguram a água e ter-se-á de manter alguns antigos “baldes” a funcionar, criando redundância nos sistemas. O que sai caro. Mas há inúmeras oportunidades trazidas pela quarta revolução industrial, a revolução por novas tecnologias, para resolver problemas da água.

Importante, importante, é perceber como a água é efetivamente importante (introduzindo, eu mesmo, redundância). Chamar a atenção sobre ela e a forma como a usamos é, de facto, efetivamente importante. E importante será perceber como novas tecnologias podem ajudar a resolver os seus desafios. Mas, não sendo nem dia mundial da água, nem similar, porque se faz agora um texto sobre água? Mais ainda porque a água se ensina apenas pela sede… Porque me parece incontornável não chamar a atenção para um report tão importante como o referenciado (quentinho e acabado de sair) para que não passe desapercebido num país como Portugal que, há menos de um ano, estava em condições de seca severa.

Agora sim, e com propriedade, não é por aparentemente estarmos agora em fase de águas calmas que não há crocodilos na água.

Professor Catedrático, Diretor Académico – Formação de Executivos NOVA SBE – Nova School of Business and Economs; crespo.carvalho@novasbe.pt