Lembro-me de ter os meus 13 ou 14 anos e deitar-me à noite no meio de um campo de futebol perto da casa dos meus pais a olhar para cima. É um espetáculo deslumbrante que os meus filhos, que vivem num ambiente repleto de luzes artificiais, raramente têm hipótese de assistir, a não ser em férias num qualquer local mais isolado. Passava bem mais de uma hora a ver se algum daqueles milhares de milhões de pontos luminosos no céu se mexia, ou a tentar selecionar uma região e conseguir contar quantos apareciam. Nestas férias, se tiver oportunidade, vou tentar fazer a mesma coisa e sugiro a qualquer pessoa que me esteja a ler que o faça. Ainda é gratuito e é deslumbrante.
E, se o fizer, fica aqui um desafio: procure entre os milhares de milhões de pontos aqueles que lhe dizem que a Terra não é o centro do universo. Como deverá imaginar, e retirando alguma piada à coisa, não vai ser nada fácil. Mas, tirando completamente a piada, vou-lhe adiantar que será impossível. Não há um único daqueles objetos, das centenas de milhões que terá à sua frente, que não lhe diga na cara a olho nu que, afinal, tudo o que lhe ensinaram está errado, a Terra é o centro do universo.
Claro que não está errado, a ciência e a tecnologia trouxeram-nos hoje ao ponto em que sabemos que a Terra é um grão de poeira ridícula numa das pernas da espiral da nossa galáxia e que, mesmo que Deus exista, a eventual preocupação com tamanha insignificância cosmológica, contrastaria de forma absurda com o seu carácter divino. Só Galileu, que tinha uma peça de tecnologia inovadora chamada telescópio, é que conseguiu ver um. Da miríade de objetos celestes que tinha na frente, um tinha fases como a Lua e mudava de tamanho com o tempo e de forma periódica, mostrando que orbitava, não a Terra, mas o Sol. Era Vénus, apenas um dos milhares de milhões. E isto batia com o modelo teórico de Copérnico, embora não fosse ao encontro da doutrina da igreja católica.
O Cardeal Belarmino, o encarregado do papa de resolver aquela maçada que o Galileu tinha arranjado, era um dos homens mais cultos da época. Sabe-se que teria ficado satisfeito com a tese de Galileu se este a tivesse corrigido, dizendo que não tinha provado que as escrituras estavam erradas, mas que as observações levantavam novas hipóteses sobre a estrutura do universo que nos rodeava. E Galileu nunca o fez.
A história de Galileu, que nunca sai da cabeça de quem se reclama cientista, mesmo aqueles que como eu não o praticam de forma a tempo inteiro, surgiu-me de uma discussão sobre a forma intransigente como a verdade científica é defendida. Não que o produto da ciência não seja passível de dúvidas. Nem poderia ser outra coisa, senão não seria ciência. Mas, pelo contrário, porque a forma como a verdade é questionada terá de ser a forma como ela foi afirmada, com lógica e com provas. Uma vez provada errada, teremos uma nova verdade. Tal significa que a ciência não é intransigente, nem com a verdade, nem com a sua valia, apenas com o método. Não é coisa para qualquer um, seja ele quem for, mas é para qualquer um que tenha a prova da coisa.
Hoje a nossa vida é preenchida com todo o tipo de gente que questiona a ciência por variadíssimos motivos. Desde os sujeitos da esquerda radical que sacam renda reclamando que toda a ciência é produto do contexto e, logo, produto do capitalismo, colonialismo e patriarcado (e, acredite, os seus impostos pagam coisas destas e chamam-lhes “cursos superiores”), até aos da direita radical para quem as alterações climáticas e o Covid-19 são invenções dos media de esquerda que politizaram a ciência, se calhar para que as pílulas do Trump ou do Bolsonaro passem a ser cura para a pandemia, apesar de a ciência dizer o contrário.
No entanto, isto não quer dizer que os cientistas não sejam passíveis de ser influenciados por dinheiro, ou por promessas. Claro que são. Mas a economia da ciência não permite que o resultado seja influenciado por política ou por dinheiro. Eu explico.
Agora o meu amigo vai de férias e vai deitar-se lá no campo de futebol e põe-se a olhar para alfa centauri (o sistema estelar mais próximo do Sol que são, na verdade, 3 estrelas da constelação de Centauro ou Sagitário). Chegará, pois, à conclusão de que a Terra é o centro do universo e legitimamente, porque será essa a conclusão óbvia a olho nu. Pode, não obstante, trazer as suas conclusões à comunidade científica que, dotada dos dados acumulados nos últimos 4 séculos, lhe dirá que está errado. Ainda que se possa reclamar de cientista, a sua conclusão não é científica. Como deve imaginar, tal prova seria o sonho de qualquer cientista, conseguir provar que todo o conhecimento do cosmos dos últimos 400 anos estava errado. Contudo, quando estiver na posse de todos os dados que os outros têm verá que a sua grande descoberta afinal não é nada de jeito.
A seguir pode ir olhar para a constelação do Cão Maior e encontrar Sirius, a estrela mais brilhante do céu. Adivinhe a conclusão a que vai chegar? Sim, a Terra é o centro do universo. Vai contar a um amigo e vão os dois dizer que a Terra é o centro do universo. Uma vez mais, como deve imaginar, isso em nada vai favorecer a posição porque a verdade não mudou. Não é esse o problema e, por isso, não será essa a resposta. Nem que apague a luz do Estádio da Luz e meta toda a gente a olhar para o céu, não vai fazer ciência e dizer que a Terra é o centro do universo.
Onde a economia da ciência é importante é na importância da descoberta. O ceticismo com que as novas descobertas são recebidas equilibram-se com o entusiasmo da sua confirmação. Imagine que eu consigo provar que não existem alterações climáticas. Vou ganhar dinheiro com isso, mas ao mesmo tempo vou ter mil sujeitos a tentar provar que estou errado, tendo outros mil sujeitos a tentar provar que estou certo porque, em ambos os casos, eles vão ganhar dinheiro com isso. É também por isso que a fraude científica é uma mentira de perna curta, qualquer descoberta mais radical vai ter logo uma multidão de volta dela.
Esta é a razão pela qual ter o Trump a dizer que o vírus é chinês ou o Bolsonaro a dizer que se cura com uma pílula de hydro qualquer coisa é um disparate absoluto e não interessa quantas estrelas conseguem ver a andar à volta da Terra, a ciência sabe que não é essa a pergunta. A cura do Covid-19 é a descoberta mais ansiada do mundo atualmente e o Trump o homem mais poderoso desse mesmo mundo. Se o Trump não consegue impor à ciência que a cura mais procurada é uma pílula milagrosa ou que as alterações climáticas não existem, como é que podemos achar que a ciência é politizável? A verdade é que tal não se verificava nem quando se achava que o papa era infalível, quanto mais agora.
No entanto, e para descansar os espíritos mais inquietos com essa possibilidade, se acha que aquilo que está a ver é o resultado do capitalismo, colonialismo e patriarcado; ou se considera que se deve à pressão dos media de esquerda, então é porque a resposta é muito mais simples. Isso que está a ver não é ciência ou você não é, definitivamente, um cientista, mas o mais provável é que nem um, nem outro.
(Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association, Professor e Investigador)