A agência Reuters anunciava no passado dia 18 de Junho que o ‘permafrost’ no Canadá está a deixar de o ser. ‘Perma’ vem de permanente e ‘frost’ de gelado. O permafrost (em português é pergelissolo) é um tipo de solo existente nas áreas continentais mais próximas do Ártico, onde o gelo e a rocha se juntam criando um tipo de solo extremamente duro e que não chega a derreter durante o ano (daí o permanente). Uma equipa da Universidade do Alasca Fairbanks que estuda este tipo de solo há cerca de duas décadas já tinha feito uma projeção de como o aquecimento global o afetaria. O que não esperava era que acontecesse agora, 70 anos antes daquilo que tinha previsto (paper original na Geophysical Research Letters). O estudo teve impacto em todos os ‘media’ do mundo e parece ter levantado o interesse dentro da comunidade científica. Parece, apenas, porque impacto neste âmbito só se percebe passados uns anos, quando o resto da comunidade corrobora e/ou utiliza os resultados para a sua própria investigação.

Eu não sou geofísico. No entanto, nas várias discussões que tenho relativas às alterações climáticas, aquecimento global ou como lhe quiserem chamar, as pessoas perguntam-me qual é a minha opinião. Ao que repito aquela que é a posição da APS (Associação de Físicos Americana) de que não há qualquer dúvida quanto à existência de alterações climáticas derivadas do efeito de estufa, não há qualquer dúvida relativa à física do efeito de estufa na concentração de energia e que há crescentes evidências de que este efeito de estufa tem sido aumentado por influência dos seres humanos, embora não exista uma certeza absoluta de que o ser humano é o responsável. E, ainda coincidente com a posição da APS, face a este cenário, a posição menos arriscada é assumir que sim, que existe influência humana e, como tal, há uma urgência em tomar medidas.

Mas não tenho uma opinião minha? Não. Ou melhor, adoto aquela que os cientistas que lidam todos os dias com isso, que estão expostos a todos os dados relativos ao assunto e que recebem todos os dias as atualizações no seu conjunto dos seus colegas do Alasca ou da Tasmânia. Obviamente, esta minha adoção de opinião alheia não é independente do facto de ter recebido treino científico, nem de ter um conhecimento básico da física que envolve o fenómeno, mas é a atitude correta a tomar sempre. Porquê?

Com a notícia relativa ao ‘permafrost’, alguém me perguntou ‘então e há registos de temperatura?’, como que a confrontar os resultados da equipa norte-americana a partir dos ‘nossos laboratórios da Baixa da Banheira’. Por alguma razão, a esta pessoa não lhe basta ver a a água derreter, tem que ver o mercúrio a dilatar no termómetro. Basta que alguma coisa se torne motivo de notícia de jornal para se formarem uns quantos milhões de especialistas nessa matéria. É normal, acontece-me a mim centenas de vezes e acontece a toda a gente. E basta que o chato do vizinho seja do Sporting, para nós sermos do Porto (ser do Benfica não é uma questão de opinião…) e logo se formam partidos pró e contra. No caso das alterações climáticas, com o pró a entrar no pacote ideológico da esquerda e o contra no pacote ideológico da direita, como se ser de direita ou de esquerda tivesse alguma coisa a ver com o assunto. ‘Sim, nunca consegui passar da trigonometria do liceu, mas como sou de esquerda, sou crente nas alterações climáticas’…

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E, da partidarização da coisa, ao aproveitamento dos políticos é um passo de formiga. Não sei que tempestade solar incidiu na torre da ONU em Nova Iorque — se calhar a mesma que incidiu sobre a Casa Branca em Washington, DC — para que o secretário-geral da ONU resolvesse que a causa da ‘luta contra as alterações climáticas’ se deveria fazer usando uma rapariga que, pelo que percebo, tem como único mérito o lutar. ‘Não vê um boi’ de geofísica mas, por razões que a razão desconhece, o Sec. Geral da ONU entendeu que os riscos de termos um planeta torrado se mitigam, não dando palavra aos cientistas, não dando força aos argumentos científicos, mas adotando a luta de uma rapariga sueca que acha que os problemas se resolvem faltando às aulas. Porque não combater os argumentos anticientíficos com alguém que se recusa a aprender? Tem lógica, não tem?

Para compor o ramalhete, faz-se fotografar de forma espetacular com água pelos joelhos, com um fato que aparentava ser caro, numa praia do arquipélago de Tuvalu. Este arquipélago é formado por ilhas que surgiram por crescimento dos corais, não como os Açores ou a Madeira que se formaram por fenómenos tectónicos. Por isso, as ilhas de Tuvalu não têm montanhas, são basicamente praias fabulosas. Por esta razão ‘achou-se’ que iriam desaparecer devido à subida do nível das águas. Tem lógica, mas o arquipélago não se formou porque as águas desceram um dia, razão pela qual os cientistas não usariam o desaparecimento do arquipélago de Tuvalu como uma das consequências desastrosas das alterações climáticas, porque há mecanismos que fazem as ilhas subir também. Claro que no dia seguinte alguém diz que o arquipélago até tem mais terreno fora de água do que o que tinha e aquilo que resultou da capa da Time foi uma enorme vitória do partido do contra. Os cientistas ficaram mais longe da luta e a defesa da mitigação dos riscos caiu na mão dos ignorantes, violando o conselho de George Bernard Shaw: ‘Nunca lutes com um porco. Ficarás sujo e o porco gosta!’.

No passado dia 23, o Sec. Geral tem o seu momento de ouro, dizendo que a geração dele falhou na resposta ao desafio da emergência climática. Foi o seu momento ‘falhámos todos’, que parece ser a desculpa última para todos os problemas de grandes dimensões com que lidamos. Há alguma razão naquilo que ele diz. Sim, falhámos todos, mas só alguns de ‘nós’ colocaram a discussão onde ela nunca deveria ter caído. Há, no entanto, um mérito na mensagem: a de que os mais novos saibam levar isto de melhor maneira o que, na minha opinião, é voltar a colocar a coisa no domínio científico na esperança de que ainda haja tempo para resolver este erro de palmatória.

A ciência não é uma questão de opinião. Não é uma democracia onde se valoriza a liberdade de expressão. Vive de alguma diversidade, mas apenas na posse de todos os dados, no conhecimento do que está certo, do que está errado e daquilo que nos desperta incerteza. É por isso que leva anos até alguma descoberta ter impacto científico, alguns mais que a aparecer nos jornais. Aquilo que o permafrost da América do Norte parece revelar é que, muito provavelmente, não só estamos a falar de reduzir emissões, mas que devemos estar a planear o que fazer com o impacto. Em termos físicos, a coisa está muito pior do que aquilo que pensávamos à partida, sendo que a altura de planear o que aí vem é agora. Claro que há muitas dúvidas sobre o que aí vem, mas de uma coisa estou razoavelmente certo. Não vai ser envolvendo a rapariguinha que falta às aulas, nem o político que estraga o fato, nem o bronco que diz que está mais frio, que vamos resolver o que quer que seja nas dúvidas que ainda existem. Porque nos sujamos e os porcos gostam.

 Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association, Professor e Investigador