Nos últimos anos a esquerda woke tem exercido grande pressão para que os programas e manuais de História sejam “descolonizados” e para que se dê muita atenção ao envolvimento de Portugal na antiga escravatura transatlântica. São várias as vozes que se têm manifestado nesse sentido, com destaque para as de Cristina Roldão e, em tom menos incisivo, de Miguel Monteiro de Barros, presidente da Associação Portuguesa de Professores de História. Dei-me conta, entretanto, de que o referido Miguel Monteiro de Barros é co-autor (com Marta Torres e Ana Sofia Pinto) de manuais para os 7.º e 8.º anos do ensino básico e resolvi ir ver o que o colega considera importante ensinar aos alunos sobre escravatura e assuntos correlacionados, não apenas nesses manuais, mas também nos respectivos cadernos de actividades.

A análise que fiz surpreendeu-me duplamente. A primeira surpresa foi ter constatado que, acoplado ao caderno de actividades do 8.º ano, vem um “livro auxiliar” de 53 páginas — repito: 53 páginas — que a coberto da designação “Cidadania e Direitos Humanos”, incide única e exclusivamente nas questões da escravatura e da sua relação com a História de Portugal, o que me parece insólito. O “livro auxiliar” do 7.º ano tem outras oito páginas dedicadas a essas questões. Tanto quanto sei não há propriamente manuais para a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, que não tem um programa rígido, mas sim três domínios, o primeiro dos quais é obrigatório. Todavia, mesmo esse, comporta seis grandes temas — igualdade de género, direitos humanos, etc. —, cada um deles subdividido em vários outros, cabendo a cada escola a escolha do tema que quer leccionar, e aos alunos irem indagar pelos seus próprios meios. É peculiar, portanto, que os autores tenham juntado ao caderno de actividades da disciplina de História um “livro auxiliar” que, no caso do 8.º ano, está monocentrado na história da escravatura dos africanos e que, no caso do 7.º ano, dedica a essa história 27% das suas páginas. Tratar-se-á de um subterfúgio a que os seus autores deitaram mão para fazer entrar essa matéria meio à socapa no ensino básico e à boleia da disciplina de História? Não sei dizer, mas lá que é insólito… é.

A segunda surpresa — positiva neste caso — foi ter verificado que a informação que nesses “livros auxiliares” se veicula a respeito da história da escravatura é geralmente correcta, e relativamente actualizada e equilibrada. Os autores têm o cuidado de ensinar que o tráfico de escravos para o mundo islâmico foi muito anterior ao europeu e que os seus volumes, em termos numéricos, foram equivalentes. No manual de História do 8.º ano (p. 38) houve a preocupação de mencionar que os beneficiários do comércio de escravos também foram “os potentados africanos com os quais (os portugueses) estabeleceram parcerias comerciais.”

No passado dia 7 de Maio, num debate que teve comigo e com outros intervenientes na RTP, a activista Cristina Roldão afirmou que “nenhum dos manuais escolares diz que Portugal foi o maior traficante de pessoas escravizadas entre o século XVI e o século XIX”. Pois bem, o “livro auxiliar” para o 8.º ano di-lo (p. 25). Os seus autores informam, igualmente, que em África já se escravizava “muito antes de o tráfico atlântico de escravos se ter iniciado” (p. 9), e, ao abordarem a questão do trabalho forçado nas colónias portuguesas, referem, adequadamente, usando um excerto da historiadora angolana Maria da Conceição Neto, que o trabalho forçado foi usado “sistematicamente, de um ou de outro modo, por todos os colonizadores europeus em África, em pleno século XX” (p. 36). Nesta passagem os autores poderiam ter dado um passo mais para afirmar, por ser verdadeiro, que o trabalho forçado se usou em toda a parte do mundo tropical, nomeadamente nas Américas já independentes e no Haiti, um país que nasceu da Revolução Francesa e de uma revolta de escravos.

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A avaliação geralmente positiva que faço a estes manuais e “livros auxiliares” não significa que eles estejam isentos de erros e de afirmações contestáveis. Há várias nessas condições e refiro aqui nove delas:

  1. Os autores afirmam que a escravidão em África existia, sim, mas chamam-lhe “servidão” (p. 9). Ora, isso pode induzir os alunos em erro pois os servos medievais europeus não eram imolados em cerimónias fúnebres ou outras, nem eram habitualmente vendidos, ao contrário do que acontecia ou podia acontecer em África.
  2. Os autores pedem repetidamente aos alunos que expliquem como é que os portugueses efectuavam, em África, a “compra de pessoas para escravizar” (p.10) nunca dizendo que essas pessoas que se adquiriam já estavam escravizadas pelos vendedores africanos e eram como tal vendidas, o que, de novo, pode induzir os alunos em erro.
  3. Os autores referem o quilombo de Palmares como exemplo da luta dos escravos negros contra a sociedade dos senhores, e assinalam, correctamente, que nesse quilombo também havia gente escravizada (p. 24). Procuram, no entanto, transmitir a ideia de que se tratava de uma escravidão mais benigna do que a imposta pelos portugueses, o que é uma perspectiva algo açucarada da realidade. Quando um escravo fugia de Palmares a reacção dos seus novos senhores não diferia substancialmente da que era norma na comunidade dos brancos: o chefe do quilombo enviava perseguidores e, se capturado, o foragido era rapidamente executado e de forma exemplar.
  4. O gráfico sobre o tráfico trans-atlântico de escravos inclui apenas os países europeus que o praticaram (p. 25), omitindo, entre outros, o importante papel do Brasil nesse tráfico, papel que os próprios historiadores brasileiros sublinham.
  5. No manual de História os autores insistem erradamente (pp. 40 e 92) no conceito de rota triangular, que no caso português era relativamente pouco praticada, pois o comércio de escravos era sobretudo alimentado por uma rota linear entre o Brasil e África, e retorno.
  6. Quando se referem a escravos negros, os autores insistem muito na expressão “pessoas escravizadas”. Todavia, no manual do 7.º ano, para referir os escravos brancos possuídos por atenienses e romanos, na Antiguidade, utilizam simplesmente a palavra “escravos” (pp. 52-53 e 66-67), o que não deixa de ser curioso e demonstrativo de um duplo critério, e do efeito que o pensamento politicamente correcto exerce, em certas pessoas, quando se trata da escolha de palavras.
  7. Os autores ensinam que para os portugueses dos séculos XV a XVIII os escravos não eram considerados seres humanos, mas sim uma “coisa” (p. 20), o que é falso ou, pelo menos, simplista.
  8. Mais simplista ainda — quase panfletária, mesmo — é a visão que os autores veiculam acerca do pensamento do padre António Vieira (p. 21) sobre o tráfico transatlântico de escravos e a escravidão. De facto, o “livro auxiliar” do 8.º ano transmite aos alunos a ideia de um Vieira que concebia a escravatura como uma grande vantagem para os escravos. Ora, a verdade é muito mais complexa do que isso e para a explicar aos alunos seria necessário falar-lhes em estoicismo, em Séneca e no pensamento de vários Padres da Igreja, para que eles percebessem a importância da dualidade corpo cativo/alma livre, o que parece precoce e desadequado para esse nível etário. Os autores aproveitam, aliás, o balanço anti-Vieira para contestarem a recente estátua que, em Lisboa, o evoca, o que é francamente despropositado.
  9. No “livro auxiliar” do 7.º ano afirma-se que “entre 1450 e 1900 Portugal terá traficado cerca de 11 milhões de pessoas” (p. 24), o que é um erro manifesto. O número correcto é 4,5 milhões de pessoas.

Ou seja, no que se refere à história da escravatura, há vários enganos ou visões contestáveis nestes manuais e “livros auxiliares”, mas julgo que não terão um peso decisivo na mensagem global que se transmite aos alunos. Espera-se, aliás, que essas passagens possam ser corrigidas ou matizadas numa eventual reedição. O que importa sublinhar, e o que acima de tudo ressalta da  análise destes livros escolares, é, por um lado, uma abordagem que procura ser informativa e isenta, e, por outro lado, a grande dimensão dada ao tema da escravatura dos negros no âmbito da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento e que se materializa, como já referi, em 61 páginas dos tais “livros auxiliares” e em mais três ou quatro no manual de História para o 8.º ano. Podemos discutir se a importância dada a esta problemática do tráfico transatlântico de escravos, da escravidão e do trabalho forçado entre os séculos XV e XX se justifica ou se está hiperdimensionada. São, tudo somado, repito, 64 ou 65 páginas dedicadas à escravatura dos africanos. Quantas se dedicam a outros temas? O mundo da Antiguidade Clássica, Atenas e Roma, incluindo a génese e difusão do Cristianismo, tem apenas 59 páginas. A expansão ibérica nos séculos XV e XVI, é abordada em 54 páginas. A revolução agrícola, o arranque da revolução industrial e o triunfo das revoluções liberais, em 58 páginas. O mundo industrializado do século XIX tem direito a 36 páginas. Ou seja, o tema da escravatura tem, graças aos tais “livros auxiliares”, um destaque generosíssimo sob qualquer ponto de vista. Eu pessoalmente considero que esse destaque é francamente exagerado no contexto da História Universal ou, até, da História de Portugal ou da História dos Direitos Humanos, mas desde que a informação veiculada seja globalmente correcta como, exceptuando aquilo que acima referi, é o caso, nada mais tenho a opor.

Todavia, e surpreendentemente, os activistas continuam a agitar-se em torno desta questão. Tivemos há dias Mariana Mortágua numa escola da Amadora para falar sobre escravatura, enquanto outros(as) activistas insistem na “descolonização” dos livros escolares. Porquê? Será que não conhecem estes manuais e cadernos de actividades, que já existem há pelo menos dois anos? Ou que, conhecendo-os, consideram que ainda não estão suficientemente “descolonizados”? Que mais exigem os woke? Ainda não lhes bastam 60 e tal páginas sobre a antiga escravatura dos africanos nos 7.º e 8.º anos do ensino básico? E que pensarão os actuais responsáveis pelo Ministério da Educação desta overdose que, por vontade de Miguel Monteiro de Barros, Marta Torres e Ana Sofia Pinto, lhes entra pelo ensino da História adentro sem ter sido convidada?