Alain Delon morreu na madrugada de domingo, 18 de Agosto. Conhecia-o desde sempre. Entrara há muito na minha vida pelas salas escuras e silenciosas que a magia dos Lumière transformara em portas para muitos mundos.
O Samouraï, que revi Domingo, revi-o em casa. Passou nessa noite numa das estações de televisão francesas, que interrompeu a programação para homenagear Delon. Vi-o porque também o queria homenagear, lembrar, rever, trazer de volta. São formas de luto. Quando o Zé Fonseca e Costa morreu, além de lhe rezar por alma, também fui ver um filme dele que nunca tinha visto – curiosamente, Cinco dias, cinco noites, uma fita feita a partir de um romance de Álvaro Cunhal, com o pseudónimo de Manuel Tiago.
Mas ali estava Alain Delon no Samouraï, de Jean-Pierre Melville, mestre do “film noire”. Melville também dirigira Delon em Le Cercle Rouge e em Un Flic. Tinha um estilo único, e além daqueles policiais negros, também rodara Léon Morin, Prêtre, uma bela fita religiosa e política com Jean-Paul Belmondo; uma história de dúvida, Fé e Graça, em tempos de Ocupação.
Le Samouraï é a história de um assassino profissional, Jef Costello, que vemos a cumprir sem estados de alma um contrato: a partida desta para melhor do director de um clube nocturno. Jef tinha, evidentemente, tratado de um alibi para cobrir a execução da “encomenda”, mas cruza-se acidentalmente com a pianista – que, entretanto, o vai poupar no reconhecimento policial.
Quando vi o Samouraï pela primeira vez já tinha visto Delon noutros filmes: talvez o primeiro tivesse sido Rocco e os seus irmãos, de Visconti, uma daquelas peças fortes do neo-realismo italiano, histórias de famílias pobres do Sul que vêm para o Norte. Ali, era uma mãe e quatro filhos que vinham de Lucânia para Milão. Todos tentavam mudar de vida na “grande cidade” (desde Dickens, Stendhal, Camilo ou Eça que é para estas ascensões ou quedas que servem as “grandes cidades”). Delon-Rocco vivia uma paixão com Nadia – Annie Girardot, uma mulher da vida. Devo tê-los visto no Porto, em 1961, entre cortes da censura.
Do Leopardo ao Samurai
Depois, em 1963, veio O Leopardo. Outra vez Visconti, o aristocrata comunista, descendente do Visconti que, em Milão, no século XVI, num surto de peste, foi ainda mais radical do que Tim Walz no Minnesota: para garantir o controle dos contágios, mandou emparedar os contaminados.
Como muita gente da minha geração, tenho uma especial fixação n’O Leopardo. É dos raríssimos casos em que um grande livro dá um grande filme, embora o filme seja, sobretudo pelo espírito ou pela intenção, uma obra bem diferente do livro do velho Giuseppe Tomasi di Lampedusa – ou talvez por causa disso. Visconti põe Burt Lancaster, que estávamos habituados a ver como cowboy ou pirata ou acrobata ou até como “o último Apache”, a fazer de príncipe de Salina. Delon é Tancredi, o sobrinho do extraordinário Príncipe, o sortudo aventureiro que ajuda a “mudar tudo para que tudo fique na mesma”, ficando com a miúda: a lindíssima plebeia Angelica Sedara – Claudia Cardinale.
Na volta dos anos setenta, depois da trilogia de Melville, Delon continuou a fazer parte das nossas vidas, com o inesquecível Borsalino, de Jacques Deray, ao lado de Jean-Paul Belmondo, seu grande amigo, rival e parceiro de vida e de filmes. Borsalino é o famoso chapéu italiano dos anos 20/30, e a história é inspirada em gangsters reais: Paul Carbone e François Spirito, dois marselheses colaboracionistas…
Na homenagem a Delon de Domingo passado, depois de Le Samouraï, passaram o Mélodie au sous-sol, de Henri Verneuil, que também fiquei a ver. Jean Gabin era Charles e Delon, Francis. Tinham estado juntos na prisão. Charles tinha o sonho de assaltar o Grande Casino de Cannes e desafiava Francis para o golpe. Francis ia à frente, em grande estilo – descapotável, bons fatos, hotel de luxo, gorjetas gordas, socialites e coristas – para preparar o assalto. O golpe corria bem, com audácia e sorte. No fim, Francis, com medo que os polícias, os jornalistas, os inspectores que se passeavam pela piscina o descobrissem, resolvia atirar os sacos do dinheiro para dentro de água. E o filme acabava com as notas a assomarem à superfície.
Mas é Melville, mais que Verneuil, o grande mestre desse cinema negro que então nos encantava, com os polícias e os ladrões de uma outra Europa, as ruas das cidades à luz do preto e branco e toda uma cenografia a que os anos entretanto passados acrescentaram um novo encanto nostálgico. Os polícias e os bandidos – que acabavam por não ser muito diferentes uns dos outros, nos chapéus, nas gabardines trespassadas – fumavam muito e pareciam robôs desapegados do mundo nas manhãs de chuva de Paris ou nas noites da Côte d’Azur, lugares mais ou menos mágicos para quem os via ao longe e crescia com eles neste rectângulo da península.
Como ladrão ou como polícia, como executor ou como inspector, como aristocrata ou como boxeur, Delon chegou-nos pela mão de grandes realizadores – René Clément, Visconti, Melville, Antonioni, Verneuil, Deray, Lautner, Losey. Estranhamente, e ao contrário de Belmondo, não filmou com Truffaut, e acabou por só fazer um filme com Godard – e tarde, em 1989 (Nouvelle Vague), quando a Nouvelle Vague já não ia para nova.
Lartéguy e Proust
Delon e a sua morte lembraram-me a importância que têm na nossa vida autores, actores, artistas que não conhecemos pessoalmente, mas com quem criamos uma proximidade por vezes maior e mais funda do que a que temos com alguns daqueles com quem nos cruzamos na “vida real”. Delon era nosso, como um bocadinho nossas, por procuração, desejo e imaginação, eram as mulheres bonitas com quem contracenava.
Tudo isto conta e é importante, mas há dois papéis de Delon que foram para mim especialmente importantes. Em 1966, um americano, Marc Robson, adaptou ao cinema Os Centuriões, de Jean Lartéguy. O livro era de 1960, tinha sido traduzido em 1961 pela Bertrand e devorado pelos que aqui nos revíamos naquele grupo de capitães, que não de Abril; um grupo de oficiais paraquedistas franceses experimentados na derrota de Dien-Bien-Phu e da Indochina que, na Argélia, queria corrigir e salvar o império colonial francês, ou o que dele ficara. No filme, Anthony Quinn era o tenente-coronel Raspéguy, e Delon o capitão Esclavier – lúcido, realista, mas perdido por uma mulher: outra vez a Cardinale, na pele de uma agente dupla da Frente de Libertação Nacional da Argélia.
O outro papel de Delon que me marcou especialmente foi o de Visconde de Charlus, na adaptação de Volker Schlöndorff (o realizador de O Tambor) de Un amour de Swann, de Marcel Proust. Jeremy Irons é Charles Swann, Ornella Muti, Odette de Crécy, a “cortesã”, Fanny Ardant, a duquesa de Guermantes, e Marie Christine Barrault, Madame Verdurin (nunca a imaginei assim). Charlus-Delon é, como sabe quem leu Proust, homossexual e judeu.
Hannah Arendt, que leu À la Recherche em França, no Verão de 1940, entre campos de detenção, iria notar que o romance de Proust dava conta da mudança – a todos os títulos fatal – do anti-judaísmo antigo, o da discriminação religiosa e social (Charlus é “civilizado” e por isso tolerado nos salões do Faubourg Saint-Germain) para o novo anti-judaísmo, o da discriminação racial; a passagem para o “A bas les Juifs” da rua popular no caso Dreyfus e noutros “casos” que levaria ao extermínio – porque se podia mudar de religião ou até de condição social, mas não de “raça”.
Às direitas
Delon foi sempre um homem da direita gaullista e liberal conservadora que se orgulhava publicamente – e temerariamente – de o ser. Era amigo declarado do fundador do Front National, Jean-Marie Le Pen, chegando até a confessar, em 2013, ter votado na “extrema-direita”. Talvez por isso Marine Le Pen tenha dito, no dia em que morreu: “Alain Delon deixa-nos órfãos dessa idade de ouro do cinema francês que ele encarnava tão bem. É uma pequena parte da França que amamos que parte com ele.”
Não nego que foi para mim importante ver sempre em Delon sinais exteriores de coragem política, num meio fundamentalmente hostil. Mas porque a política não é determinante nestas coisas, fosse ele de esquerda e não de direita teriam igualmente partido com a sua morte parte da minha juventude, da minha imaginação, dos meus sonhos… Para voltarem sempre que se apagam as luzes e se acende o écran – grande ou pequeno, já não importa.