Longe vai a RTP a preto e branco, censurada pelo Estado Novo. Dá-se, porém, um novo e prodigioso fenómeno: o da unidade de opinião na pluralidade de cores e de meios ou o da unanimidade na aparente diversidade. Tenho, por isso, uma relação saudável com a televisão: uso-a, basicamente, para ver filmes.

Este Agosto resolvi rever alguns. Comecei pelos James Bond – dos antigos (com refrescantes doses de incorrecção política) aos modernos. São fitas que entretêm e que, no conjunto, nos vão dando uma perspectiva leve e divertida da passagem do tempo e da passagem do espírito do tempo, da Guerra Fria à Détente, da Détente ao pós-Guerra Fria.

Depois, passei aos filmes políticos russos, do Eisenstein ao Dziga Vertov; e num tempo em que o épico e o romântico vão sendo raros, cedi à nostalgia dos grandes épicos românticos e fui rever o Guerra e Paz do Sergei Bondarchuk, que entre nós estreou, creio que no Cinema Império, nos anos 60.

Contra a apropriação cultural de Hollywood

A fita de Bondarchuck tem uma história interessante. É inspirada no épico de Tolstoi, mas teve na origem uma batalha cultural da Guerra Fria.

Em 1956 a Paramount de Los Angeles (fundada por Adolf Zukor, um judeu askhenazi nascido em Ricse, na Hungria, que emigrara ainda novo para a América) decidiu filmar o grande romance de Tolstoi. O projecto foi produzido por dois italianos, Dino de Laurentis e Carlo Ponti, e realizado por King Vidor, que se tornara conhecido no mudo com The Great Parade, em 1925, e realizara depois vários filmes importantes, entre eles Duel in the Sun.

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O romance de Tolstoi é um romance histórico, um retrato profundo da Rússia e da aristocracia russa no tempo das guerras napoleónicas; um romance onde personagens históricas, como o czar Alexandre, o general Kutuzov e o próprio Napoleão, se cruzam ou pairam sobre os destinos das personagens criadas pelo autor – Natasha Rostova, André Bolkonsky, Pierre Bezukhov. André e Pierre, são os protagonistas masculinos, entre os quais Tolstoi se terá dividido, e o avô do escritor terá inspirado o velho príncipe Bolkonsky, pai de André.

Vidor escolheu para os papéis-chave da versão norte.americana Audrey Hepburn (Natasha Rostova), Henry Fonda (Pierre) e Mel Ferrer (André Bolkonsky); Vittorio Gasman fez de Anatol Kuragin, o sedutor que levou Natasha a separar-se de André; e Anita Ekberg é Helena Kuragin, Helena, a mulher de Pierre, que o trai. Além do elenco de luxo, o filme teve uma equipa de guionistas importantes, entre eles Mario Camerini e Mario Soldati. A fita foi um grande sucesso na América e na Europa; mas foi também um sucesso na URSS, em 1959, atraindo mais de 31 milhões de espectadores. Isto aconteceu na détente pós-estalinista, na sequência de um acordo soviético-americano para trocas culturais, de 1958.

A única versão em cinema de Guerra e Paz que os russos tinham visto era um filme mudo de 1915, de Yakov Protazanov e Vladimir Gardin. No princípio dos anos 40, Alexander Korda ainda chegara a pensar na adaptação do clássico de Tolstoi, com Orson Welles, mas o projecto não avançara.

O sucesso da fita italo-americana de Vidor, que durava 208 minutos, excitou os brios russos. Muitos escritores e intelectuais soviéticos sentiram-se feridos pelo retrato hollywoodesco da velha Rússia e, em nome do patriotismo e da identidade cultural, exigiram que fosse para diante uma grande produção russa do épico. Até porque era também de uma história de resistência da Rússia, do povo russo, ao senhor do Mundo Ocidental, Napoleão Bonaparte, que se tratava.

E daí nasceu o filme de Sergei Bondarchuk, com ordens para vencer e esmagar o americano, pela grandiosidade e fidelidade ao épico de Tolstoi, que com as suas mais de mil páginas, contava as paixões de Natasha, André e Pierre, as grandes batalhas de Austerlitz e Borodino, o incêndio de Moscovo.

O filme mais caro da História

Para as 7 horas e 1 minuto do Guerra e Paz de Bondarchuk (que saiu, originalmente, em quatro episódios), contribuíram cerca de 60 museus e arquivos do Estado russo, dezenas de milhares de soldados do Exército soviético, e recursos financeiros, materiais e humanos hoje avaliados em cerca de 700 milhões de Dólares norte-americanos. O orçamento da super-produção não teve limites: afinal, eram as razões de Estado da Rússia e do Socialismo que estavam em jogo.

Na URSS da Détente dos primeiros anos Breznev, Bondarchuck, como qualquer realizador que se confronta com uma obra-prima literária, épica e intimista, histórica e sentimental, política e psicológica, teve de fazer escolhas. E as escolhas que teve de fazer eram também ideológicas, isto num Estado ideológico e totalitário com uma teoria da História geral e da História da Rússia. Tolstoi era um aristocrata, um aristocrata lúcido e com alguns rebates de consciência que Bondarchuck aproveitou bem, dentro da liberdade que lhe tinham dado os senhores do Estado e do Partido, na obsessão de superar a versão e visão americana da história russa de Guerra e Paz. No filme aparecem aristocratas bons e generosos – como o pai de Natasha, como André, como Pierre, como a própria Natasha. Assim, o orgulho e preconceito da classe alta é temperado por um certo paternalismo e informalidade dos Rostov com a criadagem; como a famosa cena da “dança de Natasha”, na visita aos parentes da província, em que, no fim de um dia de caça, a jovem aristocrata convive e dança com os camponeses uma dança popular russa.

E em 1812, como celebrará Tchaikovsky na sua Overture homónima, será também a unidade da aristocracia e do povo, sob o mando do Czar e do “zarolho” Kutuzov, que levará Napoleão e os franceses à derrota.

Até Guerra e Paz, Bondarchuck era um realizador sem grande nome, muito atrás de um outro candidato a adaptar Tolstoi, Ivan Pyrsev, cuja fama vinha do tempo de Estaline. Bondarchuck valeu-se claramente do Degelo e da pressão ditada pela competição com os Estados Unidos e Hollywood. Fora, de resto, eloquente ao dirigir-se ao Comité Central do Partido:

Como é que este romance, o orgulho do carácter nacional russo, foi adaptado na América e passado nas salas de cinema americanas? E nós, russos, não somos capazes de o adaptar? É uma desgraça para todos nós!

É o que se chama aproveitar bem o Zeitgeist. As duas primeiras partes da Guerra e Paz de Bondarchuck tiveram, na Rússia, grande sucesso; mas a terceira e a quarta não tanto. Waterloo, uma produção italo-soviética de 1970 que realizou com um elenco de primeira ordem (Rod Steiger fazia um excelente Napoleão, Christopher Plummer era Wellington e Orson Welles Luís XVIII) e 15.000 figurantes-soldados, também não teve grande sucesso.

Uma curiosidade final: Stanley Kubrick quis fazer um filme sobre Napoleão e o tempo de Napoleão, estudando durante algum tempo, com o escrúpulo e a minúcia que punha em tudo, os finais do século XVIII, princípios do século XIX. Chegou à conclusão de que precisaria de 6.000 figurantes para as grandes batalhas e a MGM recusou-se a financiar a super-produção. Kubrick aproveitou os estudos preparatórios para os cenários de Barry Lindon. Não se pode dizer que tivéssemos ficado a perder, mas se Kubrick estivesse na URSS teria podido dispôr, como Bondarchuk, do Exército Popular Soviético. Às vezes o Estado leva vantagem ao mercado.