Relativamente ao último artigo que escrevi sobre o livro “O Pedro gosta do Afonso”, recebi um comentário com uma expressão curiosa que me deixou a refletir: “Não se pode agradar a Deus e ao Diabo, como a autora pretende.” A minha intenção nunca foi, efectivamente, agradar a Deus e ao Diabo, mas sim tentar compreender e “conversar” com Deus e com o Diabo (sempre me disseram para ouvir os dois lados da mesma história). Sinto que alguns dos maiores sinais de decadência de uma sociedade se revelam na sua falta de empatia e na incapacidade de (tentar) compreender o próximo, as suas visões e a sua ideologia, mesmo que com elas não concordemos.

Para mim, pouco me interessa o termo “wokismo” ou qualquer nome (inventado ou ainda por inventar) para descrever a cegueira ideológica, a censura e o cancelamento ao Outro. Não tenho qualquer dúvida de que a esquerda e a direita já provaram a capacidade de querer cancelar e censurar o “adversário”. Quem me lê, faz uma inferência sobre mim, a de que pretendo “agradar a Deus e ao Diabo”. É uma inferência interessante e que me tem elucidado para um facto – o de que já é quase impossível a opinião pública aceitar pessoas que expressem a sua opinião sem escolher um lado, como se fosse, de facto, obrigatório entregar a alma ou a Deus, ou ao Diabo.

Não tenho medo nem amarras para escrever criticamente sobre o que vejo acontecer na sociedade, e seguramente não vendo a alma a ninguém. Se numa semana posso estar a escrever sobre as mulheres que odeiam os homens, uma crítica ao femismo que se infiltrou na sociedade, na semana seguinte, posso muito bem estar a escrever sobre o cancelamento que o grupo Habeas Corpus tentou fazer a um livro. Quero ser coerente com o que vejo acontecer e recuso-me a ser uma cavaleira do apocalipse dos wokistas ou dos que são contra eles, porque considero que cuspir no lado contrário é sempre uma visão redutora da sociedade e do que nela se passa. Esta incapacidade de nos situarmos no meio pode ser explicada pela identidade e pela necessidade de pertença a um grupo. É obviamente mais fácil sentirmo-nos integrados quando escolhemos um lado, e não quando escolhemos ficar no meio, a uma distância suficiente de cada grupo que nos permita refletir com clareza e imparcialidade sobre o que realmente se passa dentro desses nichos.

Eu não confundi censura com crítica, como alguns me acusaram de fazer e, por isso, pretendo explicitar. A autora do livro “O Pedro gosta do Afonso” foi impedida de apresentar o seu livro num espaço público devido a distúrbios e gritos. Se a autora poderia ter continuado? Talvez pudesse, mas a PSP retirou-a do local, uma vez que a própria já tinha recebido diversas ameaças e intimidações da parte do grupo Habeas Corpus (o que pode até ser crime), tendo apresentado já queixa às autoridades. No meu entender, a autora não foi apenas alvo de uma crítica, como aquelas que todos podemos fazer nas redes sociais, ou que saem nos jornais. E volto ao mesmo exemplo que já dei, se aos autores do livro Identidade e Família tivessem acontecido os mesmos incidentes e as mesmas ameaças por parte de algum grupo de extrema-esquerda, seria a primeira a considerar que tinham sido alvos da cultura de cancelamento e de tentativa de censura por terem escrito uma obra de iniciativa privada e com todo o direito a ser publicada e comercializada.

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Outro ponto, não entendo a necessidade que passámos a ter de classificar tudo e mais alguma coisa como sendo woke (é que quando usamos a mesma palavra para tudo, ela perde o significado). Eu já fui acusada de ser woke (seja lá o que isso quer dizer afinal) apenas por a) defender uma sociedade sem censura, b) assumir-me como ateia e criticar a Igreja Católica, c) considerar que a homossexualidade não é uma doença e deve ser encarada com a mesma normalidade que a heterossexualidade, etc. O que é afinal ser militante woke? E por que raio é que os pontos a), b) ou c) fazem de mim uma militante woke? Já ouvi quem dissesse que o wokismo é querer perverter a sociedade inteira a gostar de pessoas do mesmo sexo, por exemplo. Admito que em pleno século XXI, considero redutora a visão da homossexualidade como uma coisa perversa ou como um pecado, mas aceito que possam existir visões diferentes da minha, ainda que não concorde com elas.

Acho sinceramente que o termo woke passou a ser uma crítica fácil para atacar uma ideologia que “parece” de extrema-esquerda. Um pouco como “nazi” passou a ser uma crítica fácil para quem quer atacar gratuitamente uma ideologia que “parece” de extrema-direita. Também já reparei na crescente massa de cidadãos que gostaria de ver cancelados nos jornais, nas rádios e nas televisões, algum colunista ou comentador que escreve ou diz algo que os desagrada (acabava-se o jornalismo de opinião, não era?). Aqui não escapa nenhum, seja no Observador, no Público, no Expresso, etc. Desejar o cancelamento de alguém num jornal só porque não pensa como nós não é parecido com censura, ou sou eu que estou a ver mal? Se o objectivo era combater a censura que o wokismo já tentou levar a cabo, pensei que o plano não fosse responder com mais censura…

Quanto à questão que se tem posto vezes sem conta – a de deixar as crianças em paz. Eu sei que a minha experiência de vida ainda não é a maior devido à minha idade, mas parece-me que sempre houve histórias, livros ou filmes para crianças sobre tudo e mais alguma coisa. O problema não é alguém ter escrito um livro onde um menino parece gostar de outro menino (e a maior ressalva que aqui faço é mesmo sobre o facto honesto de que nem eu própria nem a maioria das pessoas que criticaram o livro ter efectivamente lido o livro). A sinopse, na verdade, dá conta de um menino que conta ao avô as suas vivências na escola, entre as quais, a sua ambivalência de sentimentos pelo Afonso. O problema é mesmo alguém ter escrito este livro em 2024.

Sou a maior defensora de deixar as crianças em paz. Por exemplo, quando se começa a falar do disparate de cancelar histórias como a Branca de Neve, a Bela Adormecida ou a Cinderela. É verdade que muitas das histórias para crianças falam de morte, de amor, de madrastas más, de abusos emocionais, sim, é tudo verdade, e sou a primeira a dizer que não devemos cancelar nenhuma, mas também sou a primeira a dizer que não devemos cancelar a história do menino que gosta do menino. A educação das crianças compete aos pais das mesmas e é por isso que vivemos num país livre onde os pais decidem se querem ensinar à criança que os gays são doentes mentais ou que os gays são pessoas normais. Esta mãe e autora quis escrever um livro, ninguém lhe pediu que o escrevesse nem ninguém nos obriga a comprá-lo, mas mesmo assim há quem considere que as crianças têm de ser deixadas em paz. Está certo, são opiniões, mas qualquer dia mais vale deixar de escrever qualquer coisa, não é? De qualquer forma, hoje está tudo é no tik-tok…

PS: A autora tem filhas e, numa entrevista que deu, revelou que uma delas lhe pediu se podia “apagar o livro”. Esta criança disse isto por medo e porque viu o que aconteceu à mãe por ter escrito um livro. É esta a sociedade que queremos? Ensinar às crianças que mais vale apagar um livro porque nem todos concordam com ele? Estamos a deixar fugir o mais importante, mas como andamos tão preocupados com a futura sexualidade das criancinhas (é isso que interessa, não é?), andamos é a ensiná-las a ter medo, ódio e a calar a boquinha quando alguém não gosta do que dizemos. Oh, que sonho seria acordar numa manhã sem nada para ler nem para ver, porque foi tudo censurado… what a wonderful word…