Luis Cernuda recorda o espanto que sentiu em criança quando lhe caiu nas mãos um livro de mitologia grega. Fora educado na severidade das trevas franquistas e, de repente, descobriu nesse livro uma vitalidade e uma alegria que desconhecia. «Porque me ensinaram a inclinar a cabeça perante o sofrimento divinizado», escreve Cernuda, «quando noutros tempos os homens foram felizes ao ponto de adorarem, em trágica plenitude, a beleza?» Por que córregos se teriam desviado o espanto, o júbilo, a vígil opulência das amoras?
As Metamorfoses, do poeta romano Ovídio, é um poema dividido em quinze livros que contam histórias que vão da criação do mundo até ao momento em que a alma de Júlio César se transforma numa estrela. É um dos livros mais belos jamais escritos. Um pequeno tesouro que nos chegou flutuando nas águas do tempo e que continua a preservar intacto o seu poder de fascinar. Nada do que nele se guarda nos é estranho, porque as suas histórias têm a ver com os segredos do nosso coração. O segredo, escreveu Salvatore Quasimodo, «tem / margens felizes, estratagemas, / difíceis atrações». As histórias deste livro situam-se nessas margens, tão felizes quanto cheias de perigo, de que fala o poeta italiano.
Na Grécia antiga existiam caminhos que conduziam ao chamado «prado Aletheia». O lugar da verdade. Aletheia tem duas raízes: a (ausência) e lethia (esconder). Pelo que a verdade não era um dogma, mas o espaço das perguntas, o sítio onde não há ocultação. Estas histórias são como os caminhos que nos levam àquele lugar sem ocultação onde regressam à vida todas as questões que importam: quem somos, porque não podemos deixar de desejar, porque existe o sofrimento e a morte? De certa forma, as histórias deste livro precedem-nos e encontram-nos. São o húmus que nos alimenta a alma, os guardiões dos nossos pensamentos. Atrevo-me a dizer que será nelas que se dá a invenção do humano.
Mas a verdade do homem é como Proteu, o antigo deus do mar, mutável e fugidio. Proteu conseguia prever o futuro, embora mudasse de forma, respondendo apenas a quem o conseguisse apanhar. E o reino da metamorfose é o reino da verdade, que no mundo grego nunca aparece separado do desejo. Mas o desejo, como escreveu Cernuda, é uma folha cujo ramo não existe, um mundo cujo céu não existe, uma pergunta cuja resposta não existe.
Cupido, o deus do desejo, representa a força unificadora que preside ao mundo. Uma força que nos revela que existe um vínculo entre todos os seres da criação – a polpa da amora, um sopro, a promessa de um beijo. Elias Canetti diz que o poeta é o guardião das metamorfoses e as histórias de Ovídio falam deste mundo de incessantes transformações que o desejo exige para se cumprir. Júpiter transforma-se numa chuva de ouro para surpreender Danae no seu leito, num cisne para alcançar Leda, ou transforma Ío numa bezerra para a proteger do ciúme destrutivo de Juno. Estamos no maravilhoso mundo da fábula. Um mundo onde a carícia de um deus é capaz de transformar numa bezerra uma menina trémula.
Em As Metamorfoses nunca abandonamos esse mundo em que tudo é possível. Os corpos transformam-se em fontes, pedras, flores e animais. Os sexos trocam-se. Tirésias é um homem e uma mulher, Iphis é uma jovem que se apaixona por uma amiga e a quem os deuses transformam em homem para que se amem. Em cada um de nós, dizem-nos estas histórias, há outras vidas que nos reclamam desejos ignotos. A menina que, na sua solidão, Pigmalião esculpiu representa tudo aquilo que em nós está adormecido, aquilo que espera ser despertado pelo chamamento do desejo, a sombra subtil das amoras rente aos caminhos que se multiplicam. Todo o livro está repleto das transformações que falam desses infinitos caminhos do desejo. Mas o desejo não é simplesmente aquela força que nos une aos vales, aos montes e aos rios, ao mundo natural, mas também aos deuses: descem ao mundo e misturam-se com os homens, apaixonam-se por eles, desfrutam das suas paixões e loucuras, como se a vida verdadeira, a única que vale a pena viver, apesar da incerteza e da angústia, fosse precisamente a que acontece ao nosso lado, na doce banalidade do quotidiano.
Ovídio não perde muito tempo com a criação do mundo, pois o que lhe interessa é falar do que é humano. Fala do caos primordial, em que nada conservava a sua forma, da separação entre o céu e a terra e do aparecimento de mares e rios, florestas e vales, e dos seres vivos que não tardam a povoá-los. E da criação de um ser mais sagrado, o homem, que nasce do sémen divino. E fala das idades de ouro e prata, e de como o homem se tornou conflituoso e ímpio, e os deuses decidiram castigá-lo com um dilúvio do qual apenas um casal, que regressará para repovoar a terra, será salvo. E quando isso acontece, emerge a Python, ameaçando devolver o mundo ao seu caos primordial. Mas Apolo confronta-a com as suas flechas matando-a. Apolo é o deus da luz e do sol; a verdade e a profecia; o deus da música, da poesia e das artes. O deus que acompanha os homens. E será ele quem protagonizará a primeira história deste livro que não poderemos esquecer: a do seu amor por Dafne. Apolo apaixona-se por ela e quer possuí-la, mas um deus vem em seu auxílio e transforma-a num loureiro. É o problema do desejo, que povoa a realidade de fantasmas. Aquele que deseja não quer a liberdade do outro mas a sua posse e domínio, ao contrário do amor, que tem prazer em cuidar daquilo que ama. Mas também em As Metamorfoses há belas histórias de amor: a da ninfa Eco, que perde a voz, e só consegue repetir a de Narciso que, absorto, a ignora; ou a de Píramo e Tisbe, que se suicidam, incapazes de conceber um universo de que o outro esteja ausente. O seu sangue tinge as amoras, roxas desde então, e a voz da ninfa apaixonada torna-se o eco que mais tarde ouviremos em grutas, em desfiladeiros, em sussurros sobre o ombro.
Poucos livros terão esta capacidade de comover e surpreender, de tão avassaladores, deslumbrantes e inesgotáveis são. Histórias de pastores que se transformam em fontes e flores, de amores proibidos, de reis que transformam em ouro aquilo em que tocam, de poetas que descem ao mundo da morte, de crianças insensatas que querem voar ou conduzir o carro do sol, de tecedeiras que competem com deusas, de mulheres que se transformam em serpentes para continuarem a abraçar o corpo que amam. Cada coisa, cada criatura guarda uma história que vale a pena ouvir. A mirra, uma donzela que enlouqueceu de amor pelo pai; a flor do narciso, um pastor tão belo que não conseguia tirar os olhos do reflexo que as águas lhe devolviam; um grupo de piratas que raptou Baco, a quem queriam vender como escravo; a flor vermelha da anémona, uma criança tão bela que Afrodite guardou num baú para que ninguém a visse; as estrelas, algumas maçãs douradas com que um jovem conseguiu vencer a resistência da feroz atleta que amava.
As Metamorfoses é um livro sobre o amor. O amor que não distingue razão de sentimento, o real do irreal. O amor enquanto deslumbramento e encanto, experiência que nos permite resgatar a união com o mundo; mas também enquanto escuridão e dano, enquanto inesperado mensageiro da morte. A primazia do desejo, a fusão entre o amor e a loucura, o culto dos sentimentos sobre a razão, e a importância do mundo da noite, dos presságios e da imaginação, são os temas que se repetem numa história, qualquer história que valha a pena contar. Queres ouvir? Exorcizemos estes tempos de escuridão e oblívio enquanto, pelos caminhos, nos deslumbramos com as amoras.