Não vale tudo, no suposto jornalismo de investigação!

Não vale bater à porta de um psicólogo e, em clima de consulta, criar uma relação de confiança só para poder gravar de forma oculta, e não autorizada, tudo aquilo que diz;

Não vale estabelecer uma conversa cheia de perguntas para obter respostas com o propósito único de as vir a editar e publicar, sem que o especialista saiba que está a ser entrevistado e não apenas consultado;

Não vale induzir respostas;

Não vale levar um profissional a cair em sucessivas armadilhas sempre artificiosamente montadas com base na confiança;

Não vale tirar as coisas do seu contexto;

Não vale reproduzir só aquilo que convém aos autores da reportagem porque bate certo com a sua teoria da conspiração, seja ela qual for;

Não vale levantar suspeitas sobre todas as pessoas que, a partir de agora, marcam consulta para todo e qualquer psicólogo ou psicoterapeuta;

Não vale usar os mesmos métodos que se usam para apanhar criminosos, quando não só não há criminosos, como o único crime observável a olho nu é praticado por quem grava e usa imagens e conteúdos sem consentimento prévio;

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Também não vale filmar clandestinamente num confessionário;

Não vale abusar da confiança dos que ouvem e tentam ajudar os que lhes pedem ajuda, fazendo-o de acordo com as suas convicções;

Não vale, mais uma vez, lançar uma suspeita geral sobre pessoas que pedem para se confessar, pois, a partir da reportagem da Ana Leal, todo e qualquer padre tem legitimidade para desconfiar ou não confiar completamente em quem está do outro lado.

Podia continuar a enunciar uma lista de procedimentos que não valem por serem legal e eticamente condenáveis, mas seria demasiado extensa. Ana Leal e toda a sua equipa bateram no fundo com uma reportagem onde se colocam na posição de justiceiros, a tentarem salvar supostos inocentes das garras de supostos criminosos.

Tanto quanto se percebe, ninguém foi obrigado a consultar um psicólogo nem a ir falar com um padre. Não foram levados à força, não foram puxados pelos cabelos, não foram torturados nem maltratados. Perante convicções tão contrárias às suas (ou radicalmente opostas às suas expectativas) o utente podia simplesmente retirar-se a meio ou no fim da consulta. Também podia parar a confissão e, muito simplesmente, não voltar a procurar aquela psicóloga ou aquele padre.

Nesta reportagem está tudo ao contrário e os dados estão completamente viciados. Se alguém é posto em situação de falta de liberdade, perversamente forçado a responder de forma condicionada, são a psicóloga e o padre filmados clandestinamente! Tudo sempre sob uma aparência de bem por parte do utente, chamemos-lhe assim, que se faz passar por alguém confiável, em situação de vulnerabilidade, a precisar de conselhos e apoio.

A natureza de certas perguntas que faz, bem como o enviesamento de partes da conversa (criteriosamente selecionadas, editadas e transmitidas) levam uma e outro a darem opiniões e a partilharem sentimentos, perplexidades e vivências que nunca partilhariam se não existisse um clima de confiança mútua. Mais, se a psicóloga e o padre não acreditassem que a partilha de algumas das suas fragilidades poderia eventualmente fortalecer a pessoa que lhes pedia conselho e ajuda, não falariam delas. Muito menos sabendo que outros ouvidos as ouviriam. Milhares, milhões de outros ouvidos, quero dizer.

Podemos concordar ou discordar dos argumentos usados, mas temos que admitir que tanto a psicóloga como o padre agem de acordo com as suas convicções. Propõem soluções e terapias em que acreditam, mas não as impõem. Não obrigam rigorosamente ninguém a fazer rigorosamente nada. Nada no seu discurso e na sua prática indicia a existência dessa tal ‘espécie de sociedade secreta’ de que fala a autora da reportagem, sempre em tom alarmista, sublinhado por uma banda sonora sinistra e umas imagens de cores sombrias.

Aliás aquilo que se vê nas imagens das terapias de grupo, também furtiva e ilegalmente captadas, é muito parecido com o que se passa noutros círculos de interajuda que existem em todo o mundo e nada têm de ‘espécie de sociedades secretas’. O único ‘segredo’ a que todos estão obrigados é não expor a intimidade de quem está envolvido nas terapias nem divulgar som ou imagens sem consentimento prévio. Tenho a certeza de que a jornalista e a sua equipa concordam que o sigilo profissional lhes é favorável sempre que recorrem a consultas privadas.

Nesta lógica, a ‘espécie de sociedade secreta’ em que toda a reportagem se baseia é um artifício, ‘uma espécie de manha’, uma estratégia para captar público e prender a atenção dos espectadores mais incautos, pois do início ao fim nada se prova e a única certeza com que ficamos é que os meios usados pela jornalista e a sua equipa são abomináveis.

O ‘Carlos’ que faz a denúncia e se presta a ir gravar conversas íntimas baseadas na confiança mútua, aparece sempre de costas ou protegido. Coisa extraordinária. Ele, que nos quer fazer crer que os ‘maus’ são os outros, presta-se a abusar da sua confiança para os filmar sem saberem que estão a ser filmados. Todos percebemos que mau, mesmo muito mau, é quem se presta a esta velhacaria.

Mesmo os que concordam com os argumentos do dito ‘Carlos’, porventura destroçado (ou, quem sabe, ressabiado) por estar apaixonado por um homem casado a quem está a ser difícil assumir a sua homossexualidade e separar-se dos filhos, sentem repugnância pelos métodos que ele usa para expor profissionais que pensam de forma diferente. Sei que muitos dos que se identificam com este ‘Carlos’ sentem tanta repugnância pelos métodos que ele usa como pelos argumentos com os quais não se identificam.

Independentemente das convicções de cada um (e toda a gente sabe o que penso sobre o amor homossexual, pois há décadas que escrevo artigos e crónicas sobre o tema), importa que fique claro que os meios não justificam os fins. Nesta reportagem os meios são infames e no fim não há provas de nada. Nada nos é apresentado que confira com aquilo que nos foi anunciado. E isso é grave. E é desleal. Por isso, a repórter também passou a ser referida como Ana desleal.