A “agenda” das questões ditas “fracturantes” já vem explícita no nome: quebrar, partir, dividir, escaqueirar aos pedaços a sociedade entre o Bem (os que propõem a “fractura”) e o Mal (os que se lhe opõem). Trata-se, claro, de um terreno favorável a gente avessa a dúvidas ou hesitações, subtilezas ou gradações. É o contexto preferido de brutamontes, histéricos e marxistas em geral. Uma coisa é assim apenas porque os brutamontes a vêem assim, ou apenas porque os brutamontes querem convencer os outros de que a vêem dessa maneira. Não há permissão de contraditório. Os gostos dos brutamontes não se discutem: impõem-se, naturalmente à bruta.

O pormenor da imposição não é desprezível. Na grande maioria dos temas, uma pessoa saudável adopta aquilo que acha melhor para a sua vida e nunca lhe ocorre converter os demais aos respectivos hábitos ou princípios. Se não sofrer de distúrbios psiquiátricos ou, desculpem a redundância, alucinações ditatoriais, o sujeito que pratica uma dieta vegetariana não tentará forçar os semelhantes ao consumo exclusivo de tofu e granola – por muito que lamente o sofrimento da bicharada. De igual modo, se não for maluquinho, o sujeito que não separa a humanidade em “raças” não cometerá a estupidez de imaginar um mundo sem racismo, o sujeito indiferente à orientação sexual não tentará punir os que não são indiferentes e o sujeito que não acredita em Deus dorme perfeitamente sem fuzilar os devotos. Isto, repito, se o sujeito não for maluquinho.

Os protagonistas das questões “fracturantes” são maluquinhos. Ou serão fanáticos? Ou apenas arrogantes? Ou talvez oportunistas que vêem no tratamento simplório de problemas relativamente complexos a possibilidade de arranjar uma espécie de carreira? Por norma, os mais assanhados na batalha das “causas” são criaturas sem vestígios palpáveis de serventia. Se, ao invés de ambição, lhe faltar talento, lucidez ou competência, incluindo a necessária para desentupir bueiros, o indivíduo é um forte candidato a enveredar com sucesso num sector que, à semelhança das feiras medievais, das cidades-Natal e da diabetes, se encontra em franco crescimento. Exemplo de uma figura recorrente nestas lutas é o da sra. dona Fernanda Câncio, “jornalista” que, apesar de ter privado anos com o “eng.” Sócrates sem suspeitar das espalhafatosas trapaças do homem, se acha capacitada para apontar, aos guinchos, o rumo que a sociedade deve seguir. Na versão pública e ruidosa, as questões “fracturantes” nascem aqui, no feliz acasalamento da saloiice crónica com a propensão totalitária.

Em Portugal, já tivemos sucessivas questões “fracturantes”, que se dão a conhecer através de berreiros nos “telejornais”, no “Prós e Contras” e nos programas matinais para donas de casa e vítimas do rendimento mínimo. É curioso observar que, independentemente das “fracturas”, os paladinos do progresso são quase sempre os mesmos, profissionais do chinfrim e especialistas em vencer o adversário mediante danos nos tímpanos e na paciência. É igualmente verdade que o primarismo puxa o primarismo, e que os adversários dos paladinos do progresso também acabam a trocar perdigotos acerca do assunto do momento, qualquer que este seja. O assunto, de facto, é irrelevante: das grávidas aos gays, dos negros aos transsexuais adolescentes, os alegados destinatários das questões “fracturantes” são invariavelmente meros pretextos para que os paladinos do progresso brilhem, besuntados de certezas inabaláveis por um terramoto.

Brilhar e, fundamentalmente, ganhar. O ideal é que as questões “fracturantes” possam ser aprovadas no parlamento, à revelia dos cidadãos por cuja autonomia esses democratas dizem combater. Se o parlamento votar contra, é escusado o pânico: repete-se a votação. Se votações repetidas não funcionarem a contento dos democratas, não há chatices: vai-se para referendo. Se o referendo não tombar para o lado que os democratas desejam, não custa nada: repete-se o referendo até vencer o resultado que convém ao país. O importante é que, no final, os paladinos do progresso consigam festejar o enxovalho dos opositores e a filha do ex-ministro do Ultramar consiga acrescentar ao bracito nova tatuagem a assinalar a proeza.

Agora a questão é a eutanásia e a dra. Isabel Moreira, que encomendou o cérebro nos saldos do AliExpress.com, desdobra-se em variedades televisivas a explicar que a vida humana não é, ao contrário do aborto, dos lavabos sem sexo e da penugem nas axilas, um direito absoluto. Como se nota, o nível da argumentação tem sido elevadíssimo, e assaz apropriado a uma matéria particularmente difícil de caber em generalizações. Debate-se se a eutanásia merecia ser referendada (para responder a qual pergunta?) ou desenrascada na AR (por 230 sumidades), quando se devia estar a debater se a idade mental dos portugueses ronda os 12 anos. É óbvio que a eutanásia, uma delicadeza científica e filosófica, não cabe neste circo. É óbvio que a AR aprovará uma aberração avulsa. É óbvio que, pensando melhor, desligar a máquina que nos mantém presos a tamanha vergonha não é mau de todo. Quem se despachar será poupado às “fracturas” da poligamia, do incesto, da dra. Isabel Moreira e do canibalismo. Vão por mim.

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