A recente rejeição parlamentar dos quatro projetos de lei sobre a instituição da prática da eutanásia em Portugal não encerra o processo de discussão sobre o tema que deve, muito mais apropriadamente, ser encarado como o da revisão e implementação de políticas dos cuidados de saúde no final da vida.
Ficou claro que, apesar de muito se ter tentado impor essa ideia, esta questão ultrapassa os limites ideológicos da “esquerda” e “direita”. Claro que alguns dos defensores dos princípios derrotados na votação dos deputados, erradamente agastados, vieram logo dizer que se tratou do resultado de uma luta entre “conservadores” e “liberais”, o que é politica e ideologicamente errado.
Politicamente errado porque os conceitos de liberal versus conservador são plásticos e é esquivo aplicar uma lógica de interpretação de costumes às razões subjacentes à rejeição dos projetos de lei em discussão. O que estava em votação era, para lá do princípio da possibilidade de haver eutanásia praticada por médicos ou profissionais de saúde, um conjunto de propostas legislativas que tinham inúmeras insuficiências e até equívocos de natureza constitucional, interpretativa e formal.
Ideologicamente errado, porque ser liberal ou conservador vai muito para lá da eutanásia e, note-se com rigor, raramente se será absolutamente “conservador” ou “liberal”. Pode-se, para dar um exemplo, aceitar o aborto nos termos em que a lei dispõe e não apoiar a eutanásia. E quem defender, em simultâneo, a pena de morte e a eutanásia, será liberal ou conservador? A tendência maniqueísta de tudo arrumar em categorias herméticas e irrevogavelmente separadas gera um mundo irreal. A discussão entre a favor ou contra eutanásia nunca foi entre “assassinos” e “torcionários”.
Por outro lado, ficou claro que há um grande conjunto de questões que têm de ser abordadas para lá da simples alteração ao código penal e da introdução de uma exceção na aplicação de pena por homicídio. Há problemas na classificação da causa de morte, na aplicação do clausulado das apólices de seguro de vida e de doença, na exclusão de doentes mentais e de menores, na definição da inclusão da oferta de morte, a pedido, no âmbito assistencial do Serviço Nacional de Saúde (SNS), etc. Por exemplo, um doente com uma perturbação obsessivo-compulsiva que tenha uma comorbilidade fatal e indutora de sofrimento insuportável, estando com o seu juízo intacto, por ter doença mental já não é elegível para eutanásia? E uma pessoa com esquizofrenia, em remissão, terá de sofrer ainda mais por ter esta doença que o estigmatiza ao ponto de nunca mais, mesmo não estando interditado, decidir sobre si próprio? Não, não é nada fácil. Como nunca seria fácil impor a eutanásia só em hospitais, quando uma larga franja preferiria a sua casa para morrer em paz. Confusões a que a maioria dos deputados nos pouparam.
Também será preciso haver algum entendimento sofre a melhor forma de matar, opções disponíveis e, acima de tudo, é preciso perceber que não basta legislar para que os médicos quisessem passar a ser eutanasiadores. Na verdade, deontologicamente não podem e estou convicto que a maioria seria conscientemente objetora.
Também ficou claro que o instituto do referendo seria, para já, impossível de aplicar por várias razões. Em primeiro lugar não há, por enquanto, um conhecimento geral e sempre claro sobre o que é eutanásia, suicídio assistido, morte assistida, eutanásia passiva, sedação paliativa e as várias designações que se usam para falar de abreviar o sofrimento no final da vida. Também não é evidente que a maioria dos portugueses conheça as experiências internacionais e, seguramente, não conhecerá a literatura epidemiológica sobre o tema dos cuidados em fim de vida ou as possibilidades técnicas alternativas à eutanásia. Atrevo-me a pensar que muitas das pessoas chamadas a votar num referendo deste tipo teriam dificuldade em ultrapassar a torrente de demagogia e desinformação que se derramaria sobre o eleitorado. Um dos erros mais persistentes numa larga fatia dos nossos políticos é julgarem que o eleitorado é todo igualmente culto, educado e informado.
Como aparte devo dizer que o esforço de educar, formar e ensinar deve ser sempre a principal obrigação do Estado que queira ser democrático. Substituir elites, seja lá o que isso for, pelo todo. Sendo assim, convirá que num próximo processo eleitoral para a Assembleia da República não subsistam dúvidas, nem equívocos, e que os partidos concorrentes tenham posições claras sobre a eutanásia, de forma a evitar mal-entendidos ou soluções espúrias tais como o da “liberdade de voto”. Se a opção for, muito legitimamente, omitir da lista de propostas, de um futuro programa eleitoral, a possibilidade de legalizar a “morte a pedido”, não lhes restará outra solução, numa próxima legislatura, que não seja votar contra uma opção que esconderam dos seus eleitores. Ou seja, a partir e agora, partido que queira voltar a propor e votar favoravelmente a favor da legalização da eutanásia tem de o dizer e escrever no programa que for a sufrágio.
Ora, na discussão da eutanásia, houve quem tenha repetidamente afirmado que esta necessidade de conceder o direito de escolher morrer e desistir de ser tratado seria eliminada por uma generalização eficaz de cuidados paliativos. Nada de mais falso. Não haverá paliação para que não haja eutanásia, nem haverá eutanásia por não haver cuidados paliativos, embora a vontade de morrer possa resultar de não haver paliação. Em países com eutanásia legal não há contradição entre os cuidados paliativos que devem ser sempre oferecidos antes de uma decisão de aceitar eutanásia, e a morte a pedido (veja-se Palliative Medicine 2018, Vol. 32(1) 114–122).
A existência de cuidados paliativos, no estado atual do conhecimento, não está associada a 100% de eficácia. Aí, tenho de reconhecer, só a morte é absoluta e definitiva. Aquilo que se chama ressuscitação ou reanimação, em Medicina, apenas é aplicável em pessoas que ainda não morreram. A morte é mesmo irreversível e, por conseguinte, tem uma eficácia insuperável na eliminação dos problemas dos vivos. Aos mortos não vale a pena esperar pelos progressos da ciência. E, já agora, desenganem-se os que imaginarem a possibilidade, por ora ficção, de se deixarem matar, serem criopreservados e mais tarde ressuscitados. A congelação de seres multicelulares, para lá de exceções como os tardígrados ou ursos de água, é definitivamente mortal (desculpem o pleonasmo).
Mas, aceitando que os cuidados paliativos não são panaceia universal, desde já afirmo que há muitas e diversas formas de paliar com taxas de sucesso próximas dos 100%, ainda que correndo o risco de suprimir a função do centro respiratório e, dessa forma, acabar por abreviar a vida. Não, não é o mesmo do que eutanásia, nem sequer é eutanásia passiva, é apenas usar uma intervenção farmacológica aceitando, com o devido consentimento do doente, que os efeitos secundários possam ser mortais, como acontece com múltiplos tratamentos que todos os dias são usados.
O problema é que se insiste em falar de cuidados paliativos como se estes fossem apenas cuidados para doentes terminais. Não são. Tanto a Organização Mundial de Saúde como outras instituições, veja-se o caso do National Cancer Institute dos EUA, sublinham que os cuidados paliativos devem ser instituídos o mais precocemente possível e não se devem limitar apenas a doentes em fim de vida. Paliar é aliviar sintomas e essa é a primeira obrigação de qualquer médico quando desenha o plano de intervenção terapêutica para cada doente individualmente considerado.
Em Portugal, por força da necessidade de delimitação do âmbito da lei (Lei n.º 52/2012 de 5 de setembro), a definição legal de cuidados paliativos é só aplicável a doentes terminais. A lei de bases de cuidados paliativos deveria ter tido um âmbito bem maior do que o dos cuidados em fim de vida, definidos como sendo apenas prestados a “doentes em situação em sofrimento decorrente de doença incurável ou grave, em fase avançada e progressiva”. Existe uma separação entre os cuidados gerais e a intervenção paliativa, apesar da legislação prever “continuidade de cuidados”, ou seja, “a sequencialidade, no tempo e nos serviços da Rede Nacional de Cuidados Paliativos (RNCP), e fora desta, das intervenções integradas de saúde e de apoio psicossocial e espiritual”. Em boa verdade, a entrada na RNCP é difícil e baseia-se na ideia de que é um caminho sem retorno, com uma clivagem em que não há a continuidade de cuidados. A paliação deve exercer-se desde o primeiro momento de contacto do doente com o sistema de saúde. A clivagem é perniciosa para os doentes, enganadora para as famílias e desmotivante para os médicos que, não raramente, se desinteressam do tratamento dos doentes em final de vida e, consequentemente, da aprendizagem e da prática continuada da medicina paliativa.
Igualmente, o processo de referenciação dos doentes para unidades e equipas de cuidados paliativos está dependente de um prognóstico mortal, a curto prazo, com a consequente estigmatização do conceito de “paliativo” e a sinalética, a doentes e familiares, de que não haverá mais nada a fazer. Ora, para lá da dificuldade em estabelecer esse prognóstico mortal a médio prazo, existe uma burocracia que dificulta todo o processo de transferência de cuidados, que, em boa verdade, deveria ser um complemento e não uma transferência da assistência. A transferência é ainda mais complicada por termos um conjunto muito limitado de equipas domiciliárias, baseadas em hospitais ou nos cuidados primários, e pela falta de camas em unidades especializadas no alívio de sintomas difíceis de manejar em ambulatório (as Unidades de Cuidados Paliativos – UCP). Existe, mesmo, uma circular da Coordenação Nacional da Rede de Cuidados Paliativos (Circular Normativa N. 8/2017/CNCP/ACSS de 19 de abril de 2017) que proíbe o internamento de doentes oncológicos nas UCP se ainda houver quimioterapia em curso. É uma decisão que se compreende, em face da lei e da capacidade existente, mas errada do ponto de vista da paliação oncológica que muitas vezes depende da continuação de quimioterapia ou de outros tratamentos adjuvantes. Note-se que há muita paliação que tem e deve ser feita em unidades especializadas de doentes não terminais, por exemplo neurológicos, que não tem onde ser feita.
Acresce que o número de equipas comunitárias de suporte, em cuidados paliativos, as dos cuidados domiciliários, ainda é escasso, bem como o de camas para internamento de intenção paliativa.
Nesta área, existem dois problemas fundamentais. Por um lado, a separação da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI) daquela de Cuidados Paliativos, não deveria ter acontecido da forma que aconteceu. Felizmente, a legislação em vigor não foi tão longe quanto alguns pretendiam, ao ponto de interditar os cuidados paliativos nas unidades de longa duração, cuja população é eminentemente idosa, próxima do final da vida, com multipatologias e muito carente de paliação. Nessas, é possível prestar “ações paliativas”, a designação legal para cuidados paliativos prestados por pessoal “não especializado”, o que não significa que não seja qualificado. No entanto, os critérios de admissão excluem doentes a necessitar de pouco mais do que intervenções paliativas. Conclusão, os doentes ficam num limbo, esperam meses, e lá vão permanecendo em casa, mal cuidados, ou nos hospitais especializados com o “rótulo” de internamento indevido.
Por outro lado, o modelo de implementação e desenvolvimento da RNCCI, onde os cuidados paliativos já estiveram integrados, pressupõe iniciativas do setor social e privado a quem o Estado contrata a prestação em função da tipologia proposta. Se é verdade que no caso da RNCCI este modelo exclusivo é insuficiente e dele resulta, em grande parte, a má distribuição dos lugares existentes, não raras vezes em locais improváveis, no caso da RCP o resultado é, simplesmente, a não existência de lugares suficientes. O Ministério da Saúde tem de chamar a si a construção e instalação destas unidades e equipas e não tem mais tempo para esperar por outros. Já existem algumas em poucos hospitais públicos, mas terão de ser mais. Em boa verdade, é tempo de repensar a rede de hospitais de “retaguarda” e talvez dar alguns passos atrás. Temos o triste hábito de persistir em conceitos político-organizacionais que nunca questionamos e, ainda menos, testamos.
Finalmente, há toda uma cultura paliativa e uma ciência da gestão e alívio de sintomas que falta ensinar nas escolas médicas, tal como poderia dizer o mesmo da comunicação, da transmissão de más notícias e do quotidiano da relação com os doentes, famílias e entre colegas que ainda carece de ser ensinado nas escolas médicas. A minha especialidade lida com muitos doentes incuráveis desde o momento do diagnóstico, tal como acontece com a maioria das doenças humanas e, ainda hoje, tal como há 35 anos atrás, quando me formei, encontro os internos, saídos das suas faculdades, sem saberem como lidar com a morte ou, pior ainda, com a vida dos doentes e, não raras vezes, consigo próprios. Há muito que se aprende com a repetição e com os mais velhos, é verdade, mas as escolas médicas insistem em ensinar um modelo de prática clínica que nada tem a ver com a dura realidade do SNS e do País onde ele funciona.
A minha posição, contrária à eutanásia, radica em argumentos de natureza racional, nunca separáveis dos afetos, que têm que ver com o enorme desconhecimento sobre as consequências da legalização desta forma de assassinato. Também se prendem com a incapacidade de prever um quadro normativo que compatibilize os valores da defesa da vida humana e da profissão médica com a possibilidade de, ainda que a pedido do próprio, um clínico possa deliberadamente matar um doente. Em qualquer dos casos, para lá dos argumentos morais e éticos que também me afastam da eutanásia, os projetos de lei que estavam em discussão eram todos muito maus, demasiado maus, para que pudessem ser aprovados à luz do bom senso, da prática médica e da jurisprudência nacional. Mas se a discussão sobre a eutanásia levou a que se discutam cuidados paliativos, está na hora de não se perder esta oportunidade.