Como género dramático, a tragédia grega procurava enfatizar o sofrimento humano, habitualmente centrado num indivíduo (o “herói trágico”), recorrendo a um encadeamento de acontecimentos intercalados por considerações de ordem moral, mais ou menos implícitas, que, de forma pungente, tentavam ilustrar como o destino é condicionado pelas escolhas e acções terrenas, no conserto destas com o sagrado e o divino.
Sófocles, um dos maiores autores do género, terá escrito para cima de cento e vinte peças, mas apenas sete foram conservadas até aos nossos dias. Das obras sobreviventes, Antígona ocupa cronologicamente o segundo lugar, embora, na sequência das três peças do ciclo tebano, tome o terceiro lugar na linha temporal da trama (completando a sequência Rei Édipo e Édipo em Colono).
Antígona é exemplar na forma como desenvolve, num notável crescendo dramático, a ideia de que o uso da força física como critério último da acção em nome da justiça, é tendencialmente amoral e muitas vezes contrário ao propósito inicial. E que a invasão da ordem moral, eterna e sagrada, por preceitos particulares, legitimadores da posição de força, é invariavelmente trágica.
Antígona, mulher e jovem, vulnerável e desprovida de poder, personifica a coragem e a ligação sentimental. Determinada a enterrar o corpo do irmão contra o que havia sido decretado, a sua lealdade é para com a família e o laço fraterno irrepetível, e é o princípio da decência e o respeito e a fidelidade às leis divinas que a conduzem por um caminho cujo preço pode ser a própria vida, mas que ainda assim não abandona. Dirigindo-se a Creonte, que insiste na ideia de castigar o inimigo: “Não nasci para odiar, mas sim para amar”.
No início da peça, Creonte, regente de Tebas, simboliza a razão de Estado e a sua decisão de glorificar Etéocles e castigar Polinices, irmãos de sangue de Antígona, deixando o corpo deste por sepultar, à mercê das aves de rapina e dos cães, coloca-o sob uma luz favorável. A decisão é, aliás, acompanhada pelo Coro, representação dos anciães de Tebas. Creonte apresenta-se como o defensor da polis, exaltando com a sua decisão o sentimento de patriotismo e de fidelidade dos cidadãos para com a cidade em tempos de guerra. Mas ao longo da peça, os ventos mudam. Creonte passa de uma posição que poderia ser considerada como defensável, ou razoável, à luz do cargo que ocupa e do rescaldo do conflito armado, para uma posição autoritária, caprichosa e obstinada, visível na forma como condena à morte quem ousa desafiar o seu édito, ou como se dirige grosseiramente ao filho quando este o contesta. O desacerto cósmico de enterrar quem está vivo (Antígona) e deixar à superfície quem está morto (Polinices), perpetrado por Creonte, expõe ao absurdo a sua posição.
Na sua complexidade, ratificada pela profusão de interpretações, Antígona é uma narração de confrontos: entre a lei positiva e a lei natural; entre as razões de Estado e a autonomia e liberdade do indivíduo; entre a irracionalidade inerente ao despotismo e a dignidade da vida humana; entre a força do simbólico, presente nos ritos tácitos que colocam vivos e mortos num lugar central, e a frieza de um decreto avulso e cego; entre a tirania dos fortes e a vulnerabilidade dos fracos.
Ao longo dos séculos, Antígona foi levada a cena inúmeras vezes. Em 1944, Jean Anouilh, filho de um alfaiate e de uma pianista, com um curso incompleto de Direito, uma passagem pelo mundo da publicidade como copywriter e a descoberta acidental da paixão pelo teatro em 1935 enquanto funcionário da companhia Comédie des Champs-Elysées, encenou Antígona em plena ocupação de França pelos nazis. O público identificou Antígona com a Resistência Francesa (e Creonte com o regime colaboracionista de Vichy e inevitavelmente com os alemães). A corroborar esse entendimento estava um facto conhecido de todos: era comum a Gestapo expor à luz do dia os corpos de membros da resistência como forma de dissuasão. Contra a lógica, os alemães permitiram que a peça fosse representada. Durante a estreia, os aplausos de alemães e franceses coabitaram. A razão da insólita adesão do público alemão centrou-se numa personagem: Creonte. Para além do trágico fim que se abate sobre o rei de Tebas — a perda do filho e da mulher — Creonte é observado pelos alemães como alguém que, investido da responsabilidade de liderar, e procurando manter o sentido de Estado e o respeito pela ordem social, acaba confrontado com o fanatismo e a irracionalidade de uma jovem que, de forma egoísta, só está interessada em servir o seu particular interesse, infinitamente inferior ao da polis, pondo dessa forma em risco propósitos mais elevados.
Noutra adaptação de 1948, mais radical e afastada do texto original, e da versão de Anouilh, Bertolt Brecht afasta subtilezas, colocando a acção no ano de 1945, projectando ostensivamente em Creonte a imagem do führer e colocando Antígona como símbolo da resistência do povo alemão contra o imperialismo e a guerra — algo nunca materializado, mas pelo qual Brecht fervorosamente ansiou, fazendo-o também notar no poema que escreveu para o libreto da peça.
No final dos anos 60, numa prisão situada na ilha Robben, um grupo de prisioneiros levou à cena a peça de Sófocles durante uma festa de Natal. O responsável pela produção, e também actor, chamava-se Nelson Mandela. Mais tarde, já na década de 70, um grupo de actores sul-africanos veio a escrever uma peça intitulada A Ilha, que conta, precisamente, a história da encenação de Antígona por Mandela. A peça viria a tornar-se instrumental na denuncia dos horrores do apartheid.
É provável que Antígona venha a ser encenada em Kyiv, Odessa ou Kharkiv. Como os militares alemães em Paris, haverá quem inverta moralmente a história, embalado pelo sofisticado ludo da realpolitik e do seu mundo às avessas, obviamente “complexo” e repleto de “espaços vitais”. Um dos traços da mesquinhez é o de arrastar o pensamento nos carreiros traçados pelo vulgar travestido de requintado. Serão os mesmos a recusar entrever e antecipar quem é hoje o Creonte sobre o qual fala o mensageiro a Eurídice: “acho que ele já não está vivo, apenas traz um cadáver animado.”