Desconheço se terá sido o primeiro, mas estou certo de que foi Hölderlin aquele que, referindo-se ao texto trágico como um declive, mais jubilosamente tacteou o coração da tragédia. O espírito trágico residiria, no entender do poeta alemão, não no pathos comungado pela miséria humana diante da força inexorável do destino, mas na contemplação da sua patética (e simultaneamente ousada, e por isso trágica) incapacidade para reivindicar a inscrição, num mundo que lhe é ontologicamente alheio, de um olhar que o humanize; para disputar aos deuses e à natureza a eternidade que se possa esconder por trás da vontade e do desejo, para enfrentar, em suma, o declive – inclinadíssimo no caso de Sófocles – para o qual a assunção de uma voz e de uma decisão, não importa os ardis do fatum, sempre nos empurra.

Eis, portanto, a grandeza insubstituível do texto trágico: mimetizar a vertigem à beira de um precipício, misto de temor e desejo, terror e piedade; a tontura que de nós se assenhoreia quando, à imprudência da escalada à prancha mais alta da piscina, respondemos com a cobardia de reclamarmos como nossa a inevitabilidade de um mergulho no vazio que, no fundo, é apenas filho do orgulho, da presunção, do equívoco ou daquele salto que há tanto em nós crescia; o coração suspenso, prenúncio de um acerto ou de um desnorte, medida de todo o amor, de toda a expectativa, e a consciência, precisa como um bisturi – o modo como o luar banhou a frontaria do palácio de Tebas, as pedras da calçada, o sol iluminando os prédios daquela ladeira, também ela inclinadíssima, naquela manhã –, do dia em que a nossa vida mudou.

Num gesto de trágica ousadia, Hölderlin chegou a afirmar algo que a modernidade não lhe perdoa – que era da didascália inicial de Antígona (Antígona e Ismena saem do palácio. É noite ainda.), e não dos poemas homéricos, que se precipitara toda a literatura ocidental: que pode, afinal, aquela vontade proscrita por Creonte diante da jovialidade de Ulisses ou do capricho pleno de panache de Aquiles? Tudo, na verdade.

Julgando livres as decisões que tomam por ignorarem as suas causas, os homens concluem – equivocamente, no entender de Espinosa – que são incausadas todas as suas decisões. Ora todas as coisas se esforçam por persistir no seu ser, esforço esse que não é senão a essência das coisas: o ser é, para Espinosa, a ânsia de continuar a ser sempre. O espírito humano, ao contrário das coisas, é consciente desse esforço e é a essa consciência que, no que respeita à mente, se dá o nome de vontade e, no que ao corpo diz respeito, o de apetite. O apetite de ser – uma daquelas comoventes metáforas em que Espinosa é tão pródigo – é o principal afecto do homem, correspondendo a alegria e a tristeza ao aumento ou à diminuição, respectivamente, do ser e da perfeição.

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Em 1972, a Paramount impôs a Coppola, para as filmagens de O Padrinho, Gordon Willis, um diretor de fotografia conhecido como «o príncipe das trevas», tal a sua proverbial propensão para tons crepusculares. Willis não nutria particular afeição por experimentalismos visuais – odiava planos elaborados, a posição da câmara devia ser despretensiosa, correspondendo sempre ao ponto de vista de uma das personagens – ao contrário de Coppola que, por isso mesmo, o considerava um ‘purista’. Para a cena – operática, excessiva, tragicamente humana – do atentado a Vito Corleone, Coppola queria um enquadramento de cima para que se pudessem ver as laranjas a rolar pelo chão. Willis recusou por considerar que os espectadores não o perceberiam. «E de quem é esse ponto de vista?», perguntou ao realizador. Falido, pressionado, colérico, Coppola respondeu-lhe: «o meu». O plano das laranjas ficou.

E é no desamparo de um velho baleado numa sarjeta, na impotência de Fredo sentado num passeio raiado de laranjas, que Coppola recompõe aquela ousadia primordial de sair do palácio quando é noite ainda e o trágico júbilo daquele instante em que se percebe que o esforço que nos define é o de querer ser sempre, e remoçar, sempre e absurdamente, aquele morrão do apetite de eternidade.

Na mesma semana em que Barbie estreava nas salas portuguesas, António Costa reivindicou também o seu palanque – estrutura atamancada, é certo, mas confortavelmente horizontal e, portanto, mais adequada à sua falta de grandeza, de declive, de tragédia e de maneiras: túmido e enfunado, chegou atrasado ao Conselho de Estado e retirou-se mais cedo para verter a sua presença e ‘verbo’ (chamemos-lhe assim) num compromisso futebolístico nos antípodas.

Absolutamente nulo, ignora como ousar, provocadora e alegremente, a hybris de uma voz, preferindo afinar pela sua charanga pessoal de harpias e spin doctors. Que cada ser merece atenção e que a origem do bem e do mal pode ser lobrigada pela atenção minuciosa a uma única pessoa, sobretudo se caída, são pensamentos cuja elaboração, diante do fascínio canino e sonoro por carros em marcha e bolas aos saltos, se encontra ao nível da Teoria da Gravidade Quântica em Loop. A alegria insubmissa de Antígona, contudo, advém, não de sentir que tinha razão, mas, «porque igualaste dos deuses a sorte», de ser ela mesma voz e instrumento da Razão.