Assistindo ao prodigioso espectáculo de 3ª feira – quando Francisco Assis, para impressionar o maioral, resolveu, em bragas e ginete, pedir meças numa liça que não era sua e desafiar Aguiar Branco para ver a quem calhava a palhinha mais comprida – recordei-me desse estranho fascínio clássico de agigantar uma decisão grave até ao seu estado supremo: o rosto lustroso e social-contente com que o tribuno de Amarante representou uma putativa rebeldia e modernidade chegou a ser comovente. Preocupado com a satisfação do caudilho sanjoanense, o pobre Francisco esqueceu que o valor de um jogo não é inerente ao jogo em si, mas depende do valor daquilo que se arrisca e que uma decisão assim tomada, por jamais poder ser despojada de intento ou significado, corta cerce qualquer discussão sobre o destino.

Há muito que se sabe que os homens nascem para jogar e, muito bizarramente, as pessoas têm vindo a praticar, desde o final do primeiro século dC, um jogo com um determinado livro. Nesse jogo, abre-se o livro numa página aleatória e coloca-se o dedo sobre o texto – a passagem seleccionada predirá o futuro. Se a descrição parece um pouco apatetada, os resultados sugerem o contrário. A primeira pessoa conhecida por ter arriscado este jogo foi um nobre romano atribulado pela possibilidade de não ser ele o escolhido para suceder ao seu primo, o imperador Trajano, no trono; depois de abrir o livro nesta passagem – “Reconheço que ele é aquele rei de Roma,/Cabeça grisalha, barba grisalha, quem irá formular/As leis para a cidade primitiva” – dormiu mais tranquilo. Chamava-se Adriano.

Ao longo dos séculos, muitos outros procuraram descobrir os seus destinos neste livro, desde Rabelais no início do século XVI (cujas personagens curiosamente arriscam também este jogo), até Carlos I, que, durante a Guerra Civil Inglesa – concluída com a perda do seu reino e da sua cabeça – visitou uma biblioteca de Oxford e ficou alarmado ao descobrir que o seu dedo pousara sobre uma passagem que dizia “mas deixai-o morrer antes do tempo e jazer / Nalgum lugar insepulto numa praia deserta.” Dois séculos e meio depois da execução de Carlos, quando os alemães marchavam rumo a Paris, David Slater, um renomado classicista que consultara aquele volume de Carlos, deu por si às voltas com o mesmo texto, na esperança de um presságio benfazejo.

Que livro era esse e por que foi levado tão a sério? A resposta está no nome do jogo: sortes vergilianae. O substantivo latino sortes – que tem a mesma conotação de acaso que tem em português – e o adjectivo vergilianae – que significa “relativo a Vergilius” – identificam o livro: as obras do poeta romano Publius Vergilius Maro, que conhecemos pelo nome Virgílio.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Durante um longo período da história ocidental, poucas pessoas teriam achado estranho atribuir poder profético a este conjunto de versos. Afinal, o seu autor foi o maior e o mais influente de todos os poetas romanos. Amigo e confidente de Augusto, o primeiro imperador de Roma, Virgílio era já, durante o seu tempo de vida, considerado um clássico: reverenciado, citado, imitado e ocasionalmente parodiado por outros escritores, ensinado nas escolas e devorado pelo público. As posteriores gerações de romanos consideraram as suas obras uma fonte de conhecimento humano, sobre assuntos que vão da retórica e ética até à agricultura; na Idade Média, o poeta passou a ser considerado um mago cujos poderes incluíam a capacidade de controlar as erupções do Vesúvio e curar a cegueira em ovelhas. Por mais extraordinárias que fossem as proporções a que esta reverência cresceu, ela baseou-se numa conquista muito real representada por um poema particular: a Eneida, um poema épico em doze livros acerca da mítica fundação de Roma, que algumas fontes antigas dizem ter sido encomendado por Augusto e que foi, sem qualquer dúvida, a obra literária mais influente da civilização europeia durante quase dois milénios.

Virgílio publicara outras obras mais curtas antes da Eneida, mas não foi por acaso que o poema épico foi um verdadeiro íman para os dedos dos grandes e poderosos que tentavam as sortes vergilianae. Os seus principais temas são a liderança, o império, a história e a guerra. Nele, um honrado príncipe troiano chamado Eneias, filho de Vénus, foge de Troia após a sua destruição pelos gregos e, juntamente com o seu pai, com o seu filho e um bando de companheiros, parte para fundar um novo reino do outro lado do mar, em Itália, a pátria que lhe fora prometida por profecia divina. Nessa história, Virgílio inseriu astutamente uma série de impressivos vislumbres dos futuros triunfos militares e políticos de Roma, rematados com aparições do próprio Augusto – insinuando que o império brotou de um passado mítico beijado pelos deuses. Tanto o imperador como o povo ficaram seduzidos: um século após a morte do seu autor, em 19 a.C., já os cidadãos de Pompeia grafitavam versos do poema nas paredes das lojas e das casas.

Virgílio tinha plena consciência de, compondo um poema épico que começa em Troia, narrando as andanças de um grande herói e descrevendo, livro após livro, batalhas sangrentas, estar a trabalhar à sombra de Homero. No entanto, em vez de se sentir esmagado pelo que Harold Bloom chamou “angústia da influência”, foi capaz de encontrar uma maneira de confessar os seus modelos gregos e, simultaneamente, adaptá-los a uma outra mundividência.

Ao contrário do que acontece com outras obras, talvez não precisemos de forçar uma tradução para trazer a Eneida para a era moderna. Talvez ela sempre aqui tenha estado e nós apenas a tenhamos olhado de um ângulo errado – ou em busca das coisas erradas. Talvez as extraordinárias inconsistências no comportamento e na linguagem de Eneias – as certezas alternando com a dúvida, a súbita mudança entre a frieza e a grande emoção, a aceitação por parte do poeta de um império cujas ofensas morais não pode deixar de elencar, o otimista retrato de uma grande nação que emerge assombrada pelo cinismo da realpolitik –, pairando bem acima da gosma salivar que mancomuna Pedro Nuno e seus amancebados, não sejam um problema de interpretação que tenhamos de resolver, mas, antes, as qualidades de onde emerge o perfume da sua ousada modernidade.

Em meados da década de 20 aC, havia já em circulação excertos do poema suficientemente impressivos para outros poetas, como Propércio, escreverem que “está a nascer algo maior do que a Ilíada“. Na passada terça à noite, quando Francisco Assis foi chamado a pronunciar-se sobre as suas sortes, nem o melancólico filtro de um écran vespertino foi capaz de obstruir o bafiento fedor a estrugido, cerveja choca e augustana influência.