À boa maneira provinciana, a agenda mediática portuguesa decidiu apontar baterias a Pedro Passos Coelho. O líder do PSD vive e viverá compelido a envergar a farda de racista e xenófobo, entre outros mimos. Os pretextos multiplicam-se.
Há semanas foi a manutenção do apoio do PSD ao candidato autárquico a Loures, André Ventura, por este ter abordado – e bem! – questões associadas à integração problemática da minoria cigana na sociedade portuguesa, como se esse não fosse um problema existente e como se a simples referência a qualquer identidade coletiva (cigana, portuguesa, africana ou outra) não implicasse necessariamente uma certa carga de estereotipação. Sem estereótipos seria impossível qualquer cabeça normal gerir o sem-número de informações intrínsecas aos objetos que envolvem pessoas, isto é, sem estereótipos não seria possível qualquer discurso racional sobre a vida social. Não haveria esquerda, direita, católicos, islâmicos, homens, mulheres, crianças, etc. A vida social e a sua interpretação equivaleriam a folhas em branco, num mundo ainda mais absurdo do que aquele que temos. Quem quiser que experimente pensar sem estereótipos.
Há dias o pretexto foi o de Pedro Passos Coelho ter referido – e bem! – que compete ao Estado cumprir um dos seus deveres básicos: proteger a dignidade da identidade portuguesa, prática indissociável da garantia de condições de segurança no espaço territorial nacional. Para que se saiba, qualquer Estado existe para regular as relações com os outros Estados e, necessariamente, para regular as relações da sociedade acolhedora que tutela com os imigrantes. Não apenas um Estado que não cumpra essa função será necessariamente um Estado falhado, como também fechar a porta ao debate público sobre o assunto significa recusar, e de forma grosseira, a legitimidade da existência de propostas distintas na matéria. Isso é o mesmo que recusar a liberdade e o pluralismo próprios de uma democracia.
Num momento histórico em que um dos desafios mais sensíveis das sociedades ocidentais é o da xenofilia, uns quantos alucinados esperneiam desalmadamente contra a xenofobia. Num momento histórico em que as sociedades ocidentais integram minorias (raciais, religiosas, sexuais, étnicas) como não acontece noutros locais do planeta e como nunca se verificou no passado, uns quantos alucinados esperneiam desalmadamente contra o racismo existente na Europa e nos EUA.
Estou-me marimbando para o que pensam, nestas matérias, antixenófobos e antirracistas encartados e respetivas entidades repressivas que usurparam as funções do Estado numa democracia. Faço-o com o à-vontade de quem tem um seguro de vida tão simples quanto estúpido: não sou branco. É nesse mesmo caldo cultural obscurantista que, ainda assim, Pedro Passos Coelho tem também garantido o seu escudo: um casamento “multirracial” e “multicultural”.
De forma manifesta ou, bem pior, de forma latente a importância decisiva conquistada no espaço público por atributos dessa natureza tão primária como fundamento do direito à liberdade de pensamento e à legitimidade da palavra sobre temas tão sensíveis demonstra, se dúvidas existissem, que as discussões sobre xenofobia e sobre racismo não partem de pressupostos racionais, antes de lógicas tribais primárias. É o que me permite escrever o que escrevo e é o que permite a Pedro Passos Coelho escapar à imolação. Sintoma da conquista intelectual do Ocidente pelo terceiro-mundismo mental.
Por cobardia própria, a população branca perdeu o direito à sua dignidade identitária como nenhuma outra pertença racial na face da terra. O facto revela-se ainda mais absurdo porque os seus controleiros internos – a minoria também branca que tomou de assalto o espaço público – nem sequer evidencia preocupações morais genuínas ou de sentido de justiça em relação às minorias. Limitam-se a seguir o instinto porque a anti-xenofobia e o antirracismo permitem colher votos. A escolha do alvo Pedro Passos Coelho constitui prova que sobeja. A complementar está a composição exclusiva ou esmagadoramente branca de grupos parlamentares como os do PS, PCP e BE em mais de quarenta anos de democracia.
Parece também que os controleiros esquerdistas acreditam que se não colocarem depressa o açaimo no homem, Pedro Passos Coelho, depressa veremos nas ruas de Portugal brancos a matar ciganos e pretos a-torto-e-a-direito. Aqui fica o meu agradecimento pessoal e público a indivíduos como Fernanda Câncio, Isabel Moreira, Catarina Martins, Ana Catarina Mendes ou, aqui mesmo no Observador, a Luís Aguiar-Conraria.
Anoto, no entanto, que tanta perfeição moral só pode esconder algum defeito, no caso, a necrofilia. Os heróis multiplicam-se porque, como é habitual entre cobardes, o fenómeno histórico do racismo (tal como o da xenofobia) deixou de existir nas sociedades maioritariamente brancas ocidentais. Trata-se de um cadáver em putrefação que faz com que alguns se percam de amores por ele.
Insisto, por isso, em ideias que há muito defendo. O que está a acontecer no século XXI é como se, no século XIX, se tivesse continuado a chamar escravatura ao racismo, apenas porque um e outro fenómeno tinham elementos em comum. A verdade é que aquilo que os distinguia, aos olhos da época e bem, era bem maior do que aquilo que os aproximava. Daí que a escravatura nunca se tenha confundido com o racismo.
Comparativamente e cingindo-me aos temas em apreciação, as sociedades ocidentais são hoje menos racionais do que eram no século XIX. Basta qualquer ocidental pensar comparativamente o que eram as suas sociedades há meio século em matéria de relações raciais e em matéria de relações com os estrangeiros e no que se tornaram hoje. Tal comparação permite a qualquer inteligência mediana compreender a fraude intelectual que é persistir na utilização da palavra racismo no século XXI.
Existem e existirão, sem dúvida, desafios intrínsecos às relações entre maiorias e minorias. Porém, as sociedades brancas ocidentais são as que melhor os resolveram e resolvem comparativamente às demais sociedades. Continuar a utilizar a palavra ‘racismo’, e o modo como se faz no debate público e político, serve apenas para perpetuar no tempo o estigma da população branca. O resultado disso, hoje por demais evidente, é o do agravamento dos problemas e da violência associada porque a palavra ‘racismo’ impede a identificação dos obstáculos onde eles hoje são verdadeiramente problemáticos e graves. A saber, fora das sociedades ocidentais maioritariamente brancas e no interior das minorias raciais, étnicas ou religiosas que, vivendo nas sociedades ocidentais, integram segmentos que usam e abusam da sua tolerância como nenhum outro tipo de sociedade admite.
E não é difícil compreender as razões do fenómeno ter deixado de existir. O racismo é do tempo da discriminação racial formalmente instituída no interior dos Estados, prática historicamente ultrapassada no final da segunda guerra mundial (1939-1945) e nas décadas imediatas que se sucederam. O racismo é do tempo da colonização europeia, fenómeno que também passou à história vai para meio século. O racismo é do tempo da guerra fria; é do tempo dos regimes brancos da África Austral; é do tempo do apartheid sul-africano – conjunto de fenómenos que fecharam em definitivo o seu ciclo em inícios da década de noventa do século XX quando já eram historicamente residuais.
Não é possível que os fenómenos-chave que geraram, enquadraram e alimentaram o racismo tenham sofrido transformações profundas e irreversíveis ao longo de décadas e, por seu lado, o racismo, tal como o conhecíamos, permanecer intacto. A postura atual de antixenófobos e antirracistas europeus e ocidentais constitui inclusivamente um insulto ao esforço histórico que as suas sociedades de maiorias brancas fizeram no último meio século. Foram, aliás, as únicas que o fizeram de forma genuína e com provas dadas. Não conheço outras.
Sendo o racismo um cadáver em putrefação resta a decência de sepultá-lo.