Fiquei perplexo quando, durante o debate do Estado da Nação, António Costa ostensivamente ignorou as 17 perguntas que lhe foram colocadas pelo parlamento, sem se dar ao trabalho de sequer tentar responder a uma parte delas. Este bizarro momento deixou-me a pensar no enorme paradoxo que presenciei. Afinal de contas, não será o primeiro-ministro escolhido por um parlamento que, no limite, teria o poder de propor ao Presidente da República um novo chefe de governo? Não será essa a praxis política, mas, como vimos na demissão de Santana Lopes ou na formação da geringonça, a tradição é facilmente colocada de lado quando esse é o interesse de quem manda. Não terá António Costa arriscado a sua carreira ao enxovalhar o parlamento que, reza a constituição, com a mesma facilidade com o que escolheu o pode demitir?
Que esta hipótese não tenha sequer sido colocada por ninguém no espaço público dá-nos uma indicação de que o que está na Constituição da República Portuguesa talvez não seja relevante para compreender o que ali se passou. Do mesmo livro sagrado podemos também retirar que Augusto Santos Silva, Presidente da Assembleia da República, é actualmente a segunda figura do Estado. Este protagonista, sempre tão lesto na defesa da honorabilidade da casa da Democracia de qualquer ataque real ou imaginário, poderia ter utilizado a sua posição para repreender o primeiro-ministro e lembrar-lhe a sacralidade do lugar em que se encontra, recordando-lhe que à sua frente se encontravam os representantes de dez milhões de portugueses, exigindo-lhe que respondesse às questões colocadas. Não aconteceu nem ninguém esperaria que acontecesse. Por fim temos o Chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa, o último garante da Democracia, e cujo poder da palavra sempre arrasa quando se trata de futebóis e artistas, mas cuja língua trava quando é necessário colocar o popular primeiro-ministro na ordem.
Incapaz de encontrar respostas para tão peculiar evento e para a forma como foi tratado pela comunicação social, acabei por compreendê-lo quando revi um dos melhores momentos da Guerra dos Tronos, baseado nas famosas histórias de J.R.R. Martin. Varys, uma das mais interessantes personagens destes livros desafia-nos com seguinte enigma: «In a room sit three great men, a king, a priest, and a rich man with his gold. Between them stands a sellsword, a little man of common birth and no great mind. Each of the great ones bids him slay the other two. ‘Do it,’ says the king, ‘for I am your lawful ruler.’ ‘Do it,’ says the priest, ‘for I command you in the names of the gods.’ ‘Do it,’ says the rich man, ‘and all this gold shall be yours.’ So, tell me – who lives and who dies?”»
Tradução livre: «Numa sala encontram-se três importantes homens: um rei, um clérigo e um homem rico. Entre eles encontra-se um mercenário, sem berço e não particularmente inteligente. Cada um dos importantes homens ordena ao mercenário que mate os restantes. ‘Mata-os!’ diz o rei, ‘porque sou o teu legítimo governante. ‘Mata-os’, diz o padre, ‘porque eu falo em nome dos deuses’. ‘Mata-os’ diz o rico, e todo este ouro será teu. Agora diga-me, quem viverá e quem morrerá?»
Depois de alguma discussão, Varys acaba por nos dar a resposta: Power resides where men believe it resides. (O poder reside onde os homens acreditam que ele reside.)
Diferentes momentos em diferentes lugares dariam respostas diferentes. No Estado Novo o poder encontrava-se no chefe de governo – Oliveira Salazar – e não no Presidente da República. No Japão durante a segunda guerra mundial nem o Imperador nem as chefias civis tinham grande poder, sendo os generais que comandavam de facto o império, enquanto na Alemanha nazi era um civil, Hitler, que concentrava a totalidade do poder do Reich. Entretanto em Itália, o grande Conselho Fascista e o Rei ainda detinham poder suficiente para fazer cair o ditador Mussolini. No Irão de hoje, são os clérigos que contam, com o presidente eleito por sufrágio universal extremamente limitado na sua acção. O que une todos estes casos é que o poder reside onde as pessoas julgam que ele reside. Power is a curious thing indeed…
Tudo o que se passou no parlamento neste infeliz debate do Estado da Nação, pode ser muito mais facilmente explicado por essa frase do que por eruditas discussões à volta da Constituição da República Portuguesa. António Costa não foi escolhido pelos deputados. Pelo contrário, ele escolheu os deputados da maioria absoluta e é a ele que estes devem a sua carreira e salário, que podem esfumar-se com um mero estalar de dedos. Trata os deputados socialistas como empregados porque é exactamente isso que eles são. Ele sabe-o, eles sabem-no, e nós também. Só evitamos falar do assunto porque sonhamos um dia ser uma democracia como a livre Inglaterra, onde os deputados conservadores acabaram de atirar borda fora o primeiro-ministro Boris Johnson… líder do partido conservador.
O problema não é António Costa, mas um sistema que (por desenho ou incompetência) conseguiu concentrar numa só figura grande parte do poder político, financeiro e económico do país. Já o tínhamos visto a acontecer durante o consulado de Sócrates e agora parece ter atingido níveis ainda mais preocupantes. Não é por isso de admirar que qualquer amigo de infância de Costa tenha entrada directa nos conselhos de administração das megaempresas nacionais, em especial quando estas estão mais dependentes do orçamento do Estado e da bonomia do governo do que da qualidade dos seus produtos e serviços. Também os jornalistas e opinion makers devidamente alinhados com o governo têm entrada directa para os mais diversos lugares sustentados pelos contribuintes, e que vão desde planeamento de festas e assessorias de utilidade duvidosa, até a lugares de ministros e secretários de estado.
É este poder irrestrito que explica como o primeiro-ministro sobreviveu politicamente depois de tentar agredir fisicamente um cidadão por delito de opinião. Ou, num episódio em tudo semelhante, como ameaçou e criou por despacho regras especiais, retaliando contra uma empresa energética cujo gestor se atreveu a dar más noticias sobre o preço do gás natural.
Também Pedro Nuno Santos descobriu em poucas horas que o poder estava ainda nas mãos de António Costa. Por muito que as tropas já o vejam como futuro líder (o que – seguindo o mesmo princípio – lhe dá um poder muito superior ao que o cargo de ministro alguma vez lhe poderia dar) a verdade é que a sua golpada com a questão dos aeroportos revelou-se um dos maiores erros políticos de que há memória. Só a sua humilhação total e completa perante todo o país seria suficiente para salvar o seu futuro. Também aí poderíamos encontrar paralelos na série televisiva.
Quanto à segunda figura do Estado, mais vale esquecer a Constituição. Santos Silva deve a sua carreira e o seu lugar a António Costa. E se ainda ambiciona ser o mestre de cerimónias nacional, terá de se colocar no seu lugar e permitir que toda a Assembleia da República seja achincalhada on his watch. Ao Presidente da República nem lhe parece ter ocorrido intervir. Na sua ocupada agenda a correr atrás de acidentes de avionetas e a atrapalhar bombeiros durante incêndios, ter um primeiro-ministro a destratar o parlamento não terá sido suficiente para captar a sua atenção.
Practicamente ninguém no país inteiro – incluindo a imprensa e a sua paupérrima intelligentsia – ficou verdadeiramente surpreendido com o que se passou no debate do Estado da Nação. Todos compreendemos exactamente onde está o poder. Manifestamente, nada na Constituição explica o comportamento do primeiro-ministro, mas se nos aventurarmos pelo mundo de fantasia que J.R.R. Martin recheou de dragões e prostitutas, a sua conduta fica perfeitamente clara: o poder está onde as pessoas julgam que o poder está. António Costa é a única figura do Estado, independentemente do que diga a Constituição. Os apagados deputados da maioria absoluta serão obedientes ou tornar-se-ão descartáveis. Marcelo e Santos Silva são irrelevantes e há muito aceitaram a sua posição de meros figurantes, enquanto a frágil democracia portuguesa arrastar-se-á sem as mais fundamentais instituições de controlo político e transparência governativa.
Se o caro primeiro-ministro se sentir insultado por ser comparado aos exóticos vilões da Guerra dos Tronos, tem bom remédio: experimente responder às perguntas que os representantes do povo lhe fazem na Casa da Democracia.