Iniciamos hoje uma série de três artigos com o título genérico Antropoceno e capitalismo verde. O primeiro artigo intitula-se, as metamorfoses do capitalismo, o segundo economia ecológica, uma breve digressão histórica e o terceiro as contradições do capitalismo verde.
Estamos, claramente, no limiar de uma nova era, uma era de duplo movimento. Por um lado, a internet atira-nos para o ciberespaço, a extraterritorialidade e a realidade virtual, por outro, traça um retrato fiel e detalhado da geoeconomia dos sistemas de base territorial, onde a malha fina dos sistemas de informação geográfica (SIG) nos permitirá, doravante, agir em territórios-rede com muito maior rigor e efetividade. Não sabemos, ainda, como se fará este equilíbrio dinâmico entre os dois movimentos, mas estou certo de que teremos ao nosso alcance um número maior de comunidades inteligentes que atraem o talento criativo por via de plataformas colaborativas, promovem uma oferta integrada e complementar de bens e serviços comuns, revisitam as cadeias de valor locais e regionais tendo em vista um renovado placemaking, isto é, uma coordenação mais intensa entre recursos naturais, criativos e produtivos. enfim, uma smartificação do território muito mais rica e diversificada que equilibrará, julgamos, as nossas migrações para o ciberespaço, a realidade virtual e o metaverso.
No longo registo das suas metamorfoses, o capitalismo nascido com a revolução industrial do século XVIII lançou as primeiras grandes emissões de CO2 com o consumo crescente e massivo de combustíveis fósseis, um período da nossa história climática que o Prémio Nobel da Química Paul Crutzen denominou em 2000 de período do Antropoceno. Quase três séculos mais tarde, o capitalismo acelerou com a terceira revolução industrial e a frequência e intensidade dos acidentes climatéricos registados leva-nos a concordar com o filósofo Paul Virilio quando ele se refere à indústria dos desastres do conhecimento.
Nas primeiras duas décadas do século XXI o capitalismo prepara a sua saída extraterritorial em direção ao ciberespaço, transformando-se num predador furtivo quase invisível sob a forma de grandes fundos financeiros e sociedades offshore sem rosto, agindo furtivamente numa espécie de darknet dos mercados financeiros e corredores do poder político e cumprindo a única regra que conhece, qual seja, a privatização do benefício e a socialização do prejuízo. Os seus novos parceiros nessa migração para o ciberespaço já aí estão, chamam-se inteligência artificial, blockchain e moedas virtuais. Entretanto, cá em baixo, em terra, as autoridades do costume ficarão para tratar da socialização dos prejuízos, das nossas bem conhecidas externalidades negativas e das muita vítimas do Antropoceno que, diga-se de passagem, nós facilitámos por intermédio do nosso comportamento individual irresponsável, que trata o espaço público comum como terreno baldio e terra de ninguém.
São muitas as maldades e obscenidades do sistema que domina e condiciona a nossa vida quotidiana, mas, também, o jogo das relações internacionais. Eis uma breve síntese das maldades do capitalismo e das obscenidades do Antropoceno que ele promove.
- Em primeiro lugar, o capitalismo extrativista dos chamados materiais ou matérias raras em muitos países do mundo, que são imprescindíveis para incorporar nos dispositivos tecnológicos, assim como, a circulação e acumulação dos resíduos perigosos nos mesmos países,
- Em segundo lugar, o capitalismo de áreas de influência e da indústria da guerra, diretas e por procuração, que patrocina milícias, mercenários e grupos terroristas para realizarem o trabalho sujo, ou seja, a colonização de estados falhados e o controlo de áreas de influência,
- Em terceiro lugar, o capitalismo das migrações e dos refugiados que converte a pobreza e a miséria acumuladas em fluxos de deslocados internos e refugiados que, por sua vez, são transportados para esses lugares obscenos chamados campos de refugiados, uma verdadeira indústria do crime onde as condições de vida são obscenas,
- Em quarto lugar, o capitalismo da modernização ecológica e do greenwashing uma forma de o capitalismo lavar a sua má consciência em matéria de externalidades negativas sobre o ambiente e através de operações de engenharia e manipulação genéticas e engenharia biofísica corrigir algumas disfunções que ele próprio criou sobre os solos, o coberto vegetal, os lenções freáticos, os insetos polinizadores, a adaptação das variedades, a duração dos ciclos vegetativos, etc,
- Em quinto lugar, o capitalismo de acumulação bolsista e financeira, em benefício das grandes companhias tecnológicas, em que a acumulação de tanta riqueza, em pouco tempo e em poucas mãos, contrasta de forma obscena com a acumulação de uma imensa pobreza e desigualdade e que são, como tal, uma imagem de marca do capitalismo,
- Em sexto lugar, o capitalismo de destruição massiva, ou seja, acumulação de tantas bombas de destruição massiva – genéticas, biológicas, químicas, nucleares, informáticas, sanitárias – não conhece limites éticos e faz do capitaclismo um acontecimento iminente, uma verdadeira indústria de desastres do conhecimento,
- Em sétimo lugar, o capitalismo do precariado e da uberização sociais, que, a pretexto da revolução digital, desmaterializa e desinstitucionaliza as relações sociais do período anterior do capitalismo industrial e converte o trabalhador num prestador de serviços e num trabalhador intermitente sem direitos sociais e coletivos dignos da condição humana,
- Em oitavo lugar, o capitalismo da propaganda e da desinformação bem patente nas redes sociais onde a acumulação de tantas bolhas de ódio e violência, de tanta desinformação e notícias falsas faz parte das redes de propaganda do capitalismo e é uma verdadeira coleção de obscenidades,
- Em nono lugar, o capitalismo da guerra informática e da cibersegurança é claramente a guerra do caçador furtivo e do sniper, uma guerra conduzida à distância, insidiosa e cínica, que visa promover uma indústria do capitalismo cada vez mais florescente, a indústria da cibersegurança,
- Em décimo lugar, o capitalismo da cooperação multilateral e da ajuda humanitária cujo estado atual deixa as relações internacionais e o multilateralismo numa situação verdadeiramente obscena.
O capitalismo, através das suas inúmeras metamorfoses, confunde-nos deliberadamente. O caos parece instalado mais uma vez, pois não sabemos se o futuro será uma provação ou, mesmo, uma autêntica condenação. Entretanto, as redes de influência e dominação que comandam o mundo plano vão vender-nos gato por lebre, ou seja, transformar as dificuldades em promessas e prometer salvar o que já está fora da esfera da salvação. É um admirável mundo novo para os mestres da dissimulação.