Em dezembro de 2011 o então primeiro ministro português, a braços com uma situação de emergência das contas públicas admitiu que o Estado e o próprio setor privado não conseguiriam ter oferta para todos os professores e que nos anos seguintes muitos poderiam “olhar para todo o mercado de língua portuguesa e encontrar aí uma alternativa”. As reações escandalizadas não se fizeram esperar e vieram de todas as direções, com o então líder da oposição a dizer tratar-se de um primeiro ministro “que não acredita no seu país, com braços caídos, que desistiu de lutar”.

Cinco anos depois, o primeiro ministro seguinte, referindo-se ao ensino do português nas escolas francesas disse estarmos perante “uma oportunidade de trabalho para muitos professores de Português que (…) podem encontrar trabalho aqui em França”. As reações a esta declaração foram menos violentas, mas ainda assim ouve divisão entre a esquerda e a direita, uns defendendo e outros atacando aquelas declarações, comparando-as palavra a palavra com as do primeiro ministro anterior, por vezes com impressionantes análises linguísticas e remissões às supostas diferenças de contexto. O assunto chegou ao ponto de ter havido indignação por não haver mais indignação.

Foi com igual naturalidade que há duas semanas atrás um apelo semelhante foi feito, não já à emigração dos nossos professores, mas à emigração dos processos que correm nos tribunais fiscais para a arbitragem privada.

Os assuntos são comparáveis: em todos os casos temos declarações vindas do executivo admitindo incapacidade do Estado para satisfazer as suas funções essenciais. A principal diferença é que, em vez de um apelo para os microfones dos telejornais, desta vez o apelo foi feito pela via legislativa, através do Decreto-Lei nº. 81/2018 de 15 de outubro, que juntamente com outras medidas para resolver a situação dramática dos tribunais administrativos e fiscais, dá aos cidadãos com pendências contra o Estado, a possibilidade de, até 31 de dezembro de 2019, transferir para os tribunais arbitrais as pretensões pendentes em primeira instância nos tribunais tributários, com dispensa de pagamento de custas processuais (artigo 11º).

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É o próprio Governo que classifica a situação como crítica, dizendo no preâmbulo desta nova lei ser “necessário, dada urgência e volume do problema, a implementação de medidas imediatas que consigam resultados expressivos num curto espaço de tempo”. Este invulgar reconhecimento feito pelo Governo é tanto mais invulgar por vir acompanhado do anúncio do diagnóstico da insolvência: “a análise dos dados disponíveis confirma um crescimento da litigância registada na jurisdição administrativa e fiscal, ao qual está associado um aumento dos tempos de resposta dos tribunais e, consequentemente, uma tendência para a acumulação de pendências”.

Em defesa desta lei se diga que o primeiro direito fundamental que ela vem assegurar é o direito fundamental de quem tem processos a correr nos tribunais fiscais, a ver as suas pretensões decididas em menos de dez anos, o que não deixa de ser positivo, sobretudo para quem conhece vários processos pendentes há mais tempo. A jurisdição arbitral desenvolvida pelo CAAD é atualmente a única solução contenciosa que permite aos cidadãos ver apreciada em tempo e a custos razoáveis a legalidade dos atos praticados pela administração. E essa possibilidade, de si inteiramente nova, vem finalmente assegurar que a justiça seja feita em tempo útil e em benefício da estabilidade do Direito, da confiança no Estado e da pacificação das relações entre os contribuintes e a Autoridade Tributária.

Assim, ao mesmo tempo que se saúda o facto de termos um organismo como o CAAD, que funciona bem e é capaz de resolver em seis meses litígios onde muitas vezes se discutem direitos fundamentais, também achamos grave que esta opção dada pelo Governo em vez de representar a abertura de uma porta para os particulares exercerem uma livre opção pelos tribunais arbitrais, seja isso sim, o atirar de uma boia de salvação às vítimas da denegação de justiça que acontece sempre que as questões entregues aos tribunais fiscais levem quinze anos a ser decididas e quando o são, muitas vezes as empresas deixaram de existir ou morreram os contribuintes.

Este convite aos particulares para abraçarem uma justiça privada revela o que os profissionais ligados a esta e a outras áreas conhecem bem e que tem passado em grande medida ao lado da opinião pública e dos discursos inflamados dos partidos políticos: que enquanto se tem governado para ganhar eleições, têm se degradado as mais essenciais funções do Estado, tais como as forças armadas, a saúde e os tribunais administrativos e fiscais, ao ponto de agora pretender-se resolver discretamente os problemas, privatizando-os.

Apesar de esta ideia de privatização da justiça não parecer muito compatível com a ideologia dos partidos que apoiam o governo – não foi certamente isto o que tinham em mente aqueles que construíram o nosso Estado de Direito –, não temos ouvido uma única palavra sobre o reconhecimento que o Governo faz da sua incapacidade para resolver este problema, em termos que nos fazem lembrar as declarações de quem em tempos foi acusado de ser um primeiro ministro “que não acredita no seu país, com braços caídos, que desistiu de lutar”.

Advogado