Aqui há uns meses atrás, o Observador deu-me espaço para discorrer sobre o que entendo serem as derivas do sindicalismo policial. A pretexto da fuga de uns cidadãos argelinos da zona internacional do aeroporto de Lisboa assumi, essencialmente, que quem devia tomar posição pública sobre tais matérias se esquivava a fazê-lo e tínhamos sindicalistas a atropelarem-se para perorar sobre o que lhes não cabe.
Na semana passada, o Sr. deputado José Manuel Pureza, sobre matéria também relacionada com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), afirmou que este Serviço “não pode ser uma força de bloqueio ao cumprimento de leis legitimamente aprovadas no Parlamento” acrescentando que “quem quer que seja diretor-geral não pode deixar de imprimir ao serviço que dirige um comportamento de cumprimento rigoroso e estrito da lei”.
É por demais evidente o bem fundado da declaração do Sr. deputado. Mas não pode deixar de causar estranheza que perca o seu tempo a declarar urbi et orbi o que é de per si evidente.
Alguma coisa deveria haver que justificasse esta tomada de posição e foi tentei indagar.
Pude, assim, apurar que os três membros da então equipa dirigente do SEF são tarimbados funcionários e licenciados em direito (há muito e nas velhas escolas do dito – o que se retira dos respectivos despachos de nomeação publicados no DR) pelo que não desconhecerão o conteúdo do Estatuto do Pessoal Dirigente, nomeadamente os princípios gerais de ética que no artº 4º dão forma de lei ao que o Sr. deputado proclamou.
Claro que se podia dar o caso de, tendo a música de ouvido, se terem esquecido da letra e, para essa eventualidade, fui logo tentar ver onde é que teria havido fífia. Mas — nada!
Segundo a mais esclarecida imprensa, terá havido um documento de trabalho com um parecer técnico que ia ao arrepio do entendimento político vigente sobre alterações introduzidas na chamada Lei da Imigração. Opiniões e pontos de vista diversos são a estamina das organizações, ao ponto de as mais ágeis promoverem regulares sessões de brainstorming. E não foi apurada qualquer violação do dever de reserva que tenha posto em causa a sensível natureza da matéria em causa. Toda a informação terá circulado pelos canais próprios, sem artigos de opinião, nem declarações, nem comunicados, nem entrevistas,. Nada. Logo, relações normais, entre o poder executivo e a “máquina administrativa” . E que continuaram a ser normais mesmo havendo divergência de opiniões, tanto mais que, como não poderia deixar de ser, a decisão final assentou no juízo que o poder político formulou.
Mas, este quadro de relacionamento, de há muito legalmente estabelecido e doutrinária e jurisprudencialmente consolidado, que o Sr. deputado apontou sem citar, não faz tábua rasa da dignidade e de outros direitos de personalidade dos dirigentes. E, por isso, a pessoa que é funcionária e era dirigente, na altura directora-geral do SEF, eventualmente colocada perante um conflito entre as suas convicções pessoais e os seus deveres funcionais, optou por se demitir, no que foi seguida pelos restantes elementos da equipa dirigente. Se alguma coisa de estranho ou inusitado aqui há, só poderá ser a raridade e dignidade do gesto (Um prémio chorudo por uma lista de dez casos idênticos nos últimos 30 anos…). De censurável nada, antes pelo contrário.
Assim sendo, não tendo nenhum dos dirigentes envolvidos extravasado o âmbito das suas funções nem violado qualquer dever de reserva ou sigilo quanto à matéria em causa, onde terá o Sr. deputado querido chegar com a sua admoestação?
Ao apontar para a lua dos deveres funcionais dos dirigentes da administração pública, queria que olhássemos para esta ou antes para o seu dedo e pensássemos nas páginas que já virou e nas que ainda poderá virar?
Uma pergunta para a qual não encontrei resposta e uma dúvida que não consegui esclarecer.
Por isso, e embora ciente do mundo que separa o escrito de um desconhecido das declarações de um deputado da Nação, à cautela, e porque ambos, tendo por base matérias relacionadas com o mesmo serviço, pugnámos pelo cumprimento da lei (embora num caso — o meu — ela não seja efectivamente cumprida e no outro — o do Sr deputado — o tenha sido escrupulosamente), agradeço ao OBS por me dar novamente espaço para esclarecer que:
- Ao ter criticado a forma como no âmbito das Polícias têm vindo a ser exercidos os direitos sindicais, não o fiz por entender sindicalistas feridos por qualquer captio diminutio, mas antes por entender que distorcem o quadro legal da sua actuação;
- Não entendo a Administração Pública, na sua dimensão orgânica e funcional, como um “colectivo”, onde as pessoas devam alijar a sua individualidade, a informação só tenha um trajecto vertical e se chame democracia a coisas que o não são;
- Entendo ainda que, salvaguardado o interesse público (que poderá divergir de interesses político-partidários e tal divergência ser geradora de opiniões dispares por parte dos diversos operadores políticos e administrativos) e o já referido quadro de relacionamento entre o poder político e a “máquina administrativa”, a pessoa que cada funcionário, agente, dirigente ou sindicalista é, tem sempre um espaço de liberdade individual. O preço a pagar pelo exercício dessa liberdade poderá ser a demissão. O que espero nunca venha a ser é a auto-crítica revolucionária, a reeducação pelo trabalho, ou o linchamento público.
Polícia aposentado, antigo Inspector-Geral das Actividades Económicas (1998/2001)