Quando, no passado dia 5 de Setembro, li a notícia da morte do Augusto M. Seabra, levantou-se em mim uma inominável tristeza.

Não sei se posso dizer que éramos amigos. Mas posso dizer que nos estimávamos e nos respeitávamos. A estima é um parente da amizade. Usamos a palavra estima como maneira de formalizar um sentimento. Quando dizemos “estimado Augusto” ou “querido Augusto”, estamos a dizer coisas diferentes. Ao mesmo tempo, alguém que estimamos pode ser-nos querido. Querer alguém é sentir proximidade, encontro. Querer alguém pode ser um sentimento solitário ou ter correspondência. Querer quem estimamos é elevar a estima. A estima não implica ação pelo outro. Quer dizer, dificilmente, tomamos uma iniciativa por alguém que estimamos (são poucos, os que, efetivamente, colocam na vida de todos os dias o conceito de amor ao próximo, na visão cristã, ou de solidariedade e fraternidade, na visão laica). Mas, provavelmente, tomamos iniciativa por um amigo. Se sabemos que um amigo passa dificuldades, por exemplo. A amizade é um teste à nossa verdade. Para lá da proclamação de intenções, há momentos em que se percebe quem está e quem não está presente. Quem, na nossa vida, está connosco.

A amizade é diferente do clientelismo. No clientelismo, há quem esteja com quem. Mas, ao contrário da amizade, que é uma forma de amor, e que não procura recompensas de ordem material, no clientelismo, existe um esquema mútuo de recompensas – toma lá, dá cá.

Claro que a vida é mais complexa que esta forma de estabelecer conceitos. Há estimas que evoluem para amizades, há adversários que se respeitam, amigos que se zangam, relações clientelares que evoluem para encontro ou antagonismo. Nestas e noutras situações, tudo se pode misturar um pouco, sendo difícil ver qual o verdadeiro sentimento, o valor preponderante, no ato relacional.

Durante algumas décadas, Augusto M. Seabra foi um crítico cultural muito respeitado e, por vezes, temido. Homem de grande qualidade intelectual e de vastíssima cultura, foi um dos fundadores do jornal Público, onde escreveu muitos anos, tendo, noutra fase da sua vida, tido responsabilidades e escrita no Expresso. Nunca teve um contrato de diretor, membro de direção, trabalhador por conta de outrem. Sempre afirmou a sua posição de independente. Zurziu, sem piedade, em artistas, encenadores, compositores, intérpretes, políticos. Escreveu com elegância, conhecimento de causa e pensamento próprio. Num tempo em que a escrita de opinião que junta estes três elementos – elegância, conhecimento de causa e pensamento próprio – é cada vez mais rara, referenciar quem o fez de forma excecional é não só uma homenagem como um alerta. Vivemos na rapidez, na superficialidade, nas impressões e no ir na corrente. Uma vida impregnada por múltiplas solicitações e pela pressão dos media e dos networks. Não há tempo para a profundidade. Não há vontade de profundidade. Não há paciência para a profundidade.

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Se pensarmos nos navegantes, que usam o mar como estrada, sabemos que, num barco, percorrem dada distância, do ponto A ao ponto B. O mar, para o navegante, é a superfície do mar. A sua pele. O navegante quer, acima de tudo, percorrer a superfície. Apesar de se preocupar com as correntes marítimas, o vento, a cartografia, mesmo tendo ouvido contar histórias fantásticas sobre o que se passa na profundidade dos oceanos, todo esse corpo do qual contacta a pele, é-lhe estranho, pode respeitá-lo, temê-lo, raramente, o estima, o considera amigo, o ama.

Assim estamos hoje, como navegantes digitais, e, em geral, como leitores.

A crítica cultural foi perdendo o seu viço, o seu espaço, o seu leitor, o seu poder.

Como se escolhe, hoje, uma peça de teatro, uma exposição, um filme?

Creio que da mesma maneira que, hoje, se escolhe um prato num restaurante – não aquele que parece ser mais próximo do nosso gosto, não aquele que o empregado sugere por ser uma especialidade da casa, mas, acima de tudo, aquele que é mais “instagramável”. O prato que dá a melhor fotografia, o melhor colorido, a melhor impressão imediata, que toda a gente come.

A vida, hoje, não mergulha no oceano do Ser, prefere a navegação à vista.

Nos últimos anos, com a saúde muito debilitada, e quase sem recursos financeiros, tendo, pelo seu temperamento difícil, afastado pessoas próximas, o Augusto foi viver para um lar, sozinho. Quando o Augusto M. Seabra era Augusto M. Seabra e não só um “velho num lar”, era diferente. Mas o seu desaparecimento da vida pública também levou ao desaparecimento do seu lugar próprio no quadro da sociedade portuguesa, que, como outras sociedades, cuidam pouco dos seus mais velhos, daqueles que deram muito e chegam ao momento do retiro.

Tive a oportunidade de perceber as ausências, nesta última fase da vida do Augusto, em alguns momentos, que acompanhei, a seu pedido.

Não estou a viver em Portugal há quase um ano, e há coisas que, quando se está fora, parecem que estão cobertas por uma diferente noção do tempo.

Quando, da última vez, ele me ligou e eu estava ocupado, deixei o telefone tocar e pensei de comigo para comigo, “já lhe ligo, quero falar com ele com calma e recato”.

Essa chamada vai ficar, eternamente, por responder. Não sei o que o Augusto me queria nem vou poder saber.

Guardo a chamada não atendida, como guardo, no meu portátil, todos os números dos que se vão, todos os nomes que nos deixam, que me deixam. Quando percorro a lista telefónica dos vivos, também lá estão os mortos, que assim, naquele momento, celebro, no ápice do nome no ecrã. Todos fazem parte de mim, de todos cuida o meu caminho.

Até à vista, Augusto.