Espantosamente, o Partido Socialista, a esquerda em geral e a imprensa (perdoem-me o pleonasmo) insiste na tese de que o Governo de Passos Coelho se entreteve a ir “além da troica” e que resolveu tomar medidas impopulares por sadismo.

Independentemente de ser completamente implausível a ideia de que um governo que depende de eleições toma medidas impopulares por gosto, seria de esperar que, oito anos depois, a imprensa já tivesse abandonado um bocadinho a posição ideológica dominante no jornalismo e se tivesse aproximado dos factos.

Comecemos pelo princípio.

A política de resposta aos problemas financeiros do Estado português começa, oficialmente, com o primeiro PEC, de Março de 2010, cujo objectivo já era contrariar o sobre-endividamento do Estado.

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A “narrativa” que o Partido Socialista inventou na altura atribuía à crise financeira internacional a necessidade das medidas previstas nesse Programa de Estabilidade e Crescimento 2010-2013, e com certeza essa crise desempenhou um papel relevante no agravar da crise.

A questão política de fundo, no entanto, é a discussão sobre a forma como o governo português e o Partido Socialista encararam essa crise, leviana e irresponsavelmente: a crise afectou todo o mundo, mas não afectou todo o mundo da mesma maneira e seria útil que o Partido Socialista assumisse a responsabilidade política pela forma como olhou para o problema, e pelas decisões que foi tomando até ser obrigado a pedir à troica para resgatar as finanças do Estado português.

Já nessa altura, insisto, em Março de 2010, se dizia “Em resultado do contexto macroeconómico acima considerado e das medidas de controlo orçamental programadas, antevê-se a descida do défice orçamental em 1 ponto percentual, para 8,3 por cento do PIB, em 2010 (foi de 11,4%). A trajectória de consolidação orçamental deverá acentuar-se nos anos seguintes, projectando-se que o défice orçamental atinja 2,8 por cento do PIB em 2013 (foi de 5,1), um nível que respeita o limite máximo de 3 por cento imposto pelo Tratado da União Europeia”.

O Partido Socialista, em Março de 2010, comprometia-se a descer o défice de 9,9% em 2009 para 8,3% e o resultado foi um aumento do défice para 11,4%, com desculpas esfarrapadas sobre o contexto externo e aumento dos juros no mercado internacional.

O contexto era mau (como foi durante todo o tempo da troica) mas tinha mais impacto em Portugal, país cuja credibilidade financeira o governo do Partido Socialista se entreteve a desfazer metodicamente.

O Governo bem prometia “No conjunto de medidas apresentadas para diminuir a despesa, a contenção dos gastos com o pessoal, incluindo prestações sociais, e com a saúde deverão ter um efeito substancial. Adicionalmente, o peso do consumo intermédio no PIB deverá descer, devido à redução das despesas com o funcionamento das Administrações Públicas e com o material militar” (não senhores jornalistas, não é o memorando da troica, é o primeiro, o primeiro, PEC apresentado pelo Governo do Partido Socialista), simplesmente ninguém acreditava e, por isso, os juros subiam mais em Portugal que noutros países.

Logo dois meses depois, o Governo alterava esse programa para introduzir mais medidas de controlo orçamental (austeridade, como se diz quando se fala de outros governos que não os dos Partido Socialista), em especial a subida do IVA, mas também um extenso programa de privatizações, visto que a credibilidade do país em matéria de rigor orçamental andava pelas ruas da amargura e os credores não viam resultados concretos na redução do sobre-endividamento do Estado.

Ainda em Setembro de 2010 o Governo apresenta uma nova actualização do PEC, conhecida como PEC3, que incluía mais subida de impostos, cortes de salários e congelamento de pensões.

Não, senhores jornalistas, não era a troica, era o governo do Partido Socialista, o mesmo partido socialista que depois de tudo isto, já em Março de 2011, depois do pedido de resgate financeiro, elegeu José Sócrates com 93,3% dos votos, com base numa moção de estratégia coordenada por António Costa que afirmava, no último comício da campanha eleitoral de 2011 “Pensaram que podia cortar o PS às fatias, dizendo que uns eram bons e outros eram maus. Estavam enganados, não conhecem o PS! No PS temos um lema: um por todos e todos por um”.

Vale a pena ler hoje o texto integral do PEC4 para se ter uma ideia do embuste em que a esquerda e a generalidade do jornalismo insiste, promovendo ou aceitando a ideia, factualmente falsa, de que o governo de Passos Coelho foi além da troica.

Para quem não tiver paciência, fiquemos pelo que sobre a comparação entre o PEC4 e memorando da troica escreveu Francisco Louçã, em 2014: “Em resumo, o PEC4 corrigia Portugal, sim senhor. Aumentava impostos, privatizava empresas estratégicas, cortava no serviço nacional de saúde e na escola pública, congelava o salário mínimo, facilitava os despedimentos e as expulsões de inquilinos. Por isso, se um desconhecido de repente lhe oferecer flores, desconfie: isto era a antecipação do programa da troika e não era diferente senão em detalhes menores (era até mais exigente quanto aos prazos e intensidade dos cortes orçamentais). Era o que era, mas não era uma alternativa à austeridade. Era a austeridade”.

Vale a pena citar directamente o memorando: “A Decisão faz também depender os desembolsos adicionais de uma conclusão positiva das avaliações de condicionalidade, que terão lugar ao longo dos três anos de duração do programa. Estas avaliações irão aferir do progresso alcançado em relação aos critérios de política da Decisão do Conselho e especificados no MEFP e neste MoU, bem como nas Recomendações do Conselho, no contexto do Procedimento dos Défices Excessivos. A primeira avaliação trimestral será levada a cabo no terceiro trimestre de 2011, e avaliará o cumprimento das medidas a implementar até ao final de Julho. As avaliações trimestrais seguintes irão avaliar o cumprimento das medidas a ser implementadas até ao final do trimestre anterior.

Se os objectivos não forem cumpridos ou for expectável o seu não cumprimento, serão adoptadas medidas adicionais”.

O relevante no memorando não são as medidas listadas, essas eram tão concretas quanto possível, porque os credores estavam fartos de conversa de treta e “narrativas”, eram os objectivos que contavam para o Estado continuar a ter dinheiro para pagar salários, pensões e todas essas minudências em que se gasta o dinheiro dos contribuintes que os governos do Partido Socialista tinham desbaratado em fantasias.

Ou seja, ir além da troica seria ir além dos objectivos de equilíbrio financeiro acordados entre o Governo do Partido Socialista e a troica.

O facto é que (as citações podem ser verificadas aqui) não foi isso que aconteceu: “Devido a sucessivas medidas de austeridade, os défices foram sendo reduzidos. Mas com a economia a cair muito mais que o previsto e o desemprego a disparar, as receitas fiscais ressentiram-se e as metas dos défices tiveram de ser revistas sucessivamente. No final de 2013, o défice registado foi de 4,9% do PIB, longe dos 3% inicialmente previstos”.

O que aconteceu, e é verificável, é que o Governo de Passos Coelho ficou bem aquém da troica, felizmente para todos nós e, ainda assim, conseguiu o que o Governo do Partido Socialista não tinha conseguido: criar confiança suficiente nos mercados para que o funcionamento do Estado português retomasse a normalidade.

Pena é que a imprensa continue sem retomar a normalidade de se concentrar nos factos e persistir em andar às voltas com “narrativas” de políticos irresponsáveis e muito criativos.