A repetição galhofeira de um adágio aristotélico (“A palavra cão não morde”), como se de uma evidência se tratasse, levou-nos a dele concluir um desdém pelas palavras quando, na verdade, afirmando que o signo não se confunde com o objecto, o Estagirita pretendia simplesmente sublinhar o poder irreplicável da linguagem: se circunscrito a uma palavra, tudo quanto é lúgubre e ameaçador torna-se subitamente doméstico, inofensivo, familiar.

As profundezas dessa relação primitiva e totémica entre a linguagem e a realidade têm sido pasto apetecível para muitos autores que – da Filosofia à Literatura, atormentados pela necessidade de trazer à luz os seus demónios interiores – ousam sulcar a fenda semântica entre a coisa e o nome que a diz, exorcizando verbalmente os seus e os nossos terrores.

Nas páginas da literatura portuguesa do século XX, por exemplo, é icónica a simplicidade bronca e imbecil com que Bexiguinha, personagem sinistra de Aparição de Vergílio Ferreira, afirmando que “a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois pedra já não quer dizer nada”, personifica o perigoso sortilégio que as palavras representam para quem, incapaz de lhe apreender o conteúdo, se deixa dominar por uma forma vazia. A Bexiguinha, o basbaque lorpa diante do mistério que não compreende, não resta mais que a sedução vertiginosa da morte, assassinando Sofia na mesma alienação demente com que anteriormente matara uma galinha: a repetição maquinal das palavras, sugando o seu sentido, desmaterializa-as e, em última análise, desumaniza o outro, estuprando o rosto da Criação.

Não têm faltado ao PS pequenos Bexiguinhas – aprendizes de feiticeiro atormentados pelo acne – para quem as palavras, devidamente repetidas até à sua desmaterialização, não passam de meros instrumentos para moldar uma realidade (pensam eles) mais submissa.

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Um dos últimos mantras destes noviços é o adjectivo estrutural que, nos tempos mais recentes, tem servido à língua de pau desta pandilha enquanto sôfrega estopa para o jovial naufrágio colectivo para que o PS nos conduz: qualquer que seja o novo rasgão aberto no tecido social (colapso do SNS, crise habitacional, escassez de professores, Justiça paralisada, economia exangue, asfixia fiscal …) ei-los, rápidos e solícitos, a remexer a forragem no seu bornal de alimária em busca do sacrossanto adjectivo. Sim, esses mesmos mustelídeos em que estão a pensar – aqueles promissores petizes que, no tirocínio em Socialismo Avançado na recente academia de Verão, concluíram summa cum laude Embuste e Logro I, dissertando, sob batuta experimentada, acerca dos poderosos efeitos da repetição ad nauseam do adjectivo estrutural: erodir qualquer relação com o seu significado original até não significar coisa alguma.

Estudantes bisonhos mas esmerados, estes prestidigitadores de feira e almocreves de banha da cobra aprimoraram a lição dos adjectivos: instilando-lhes uma subtil dose de recriminação e angústia que recaia sobre os sujeitos (o caos nas urgências é estrutural por culpa das pessoas que há anos a elas recorrem abusivamente), importa também conferir à realidade que pretendem caracterizar um certo ar de naturalidade darwinista (o subfinanciamento está para o SNS como a fotossíntese para as plantas).

Deste modo, insinuando subliminarmente que, já ao tempo da ocupação romana, Viriato y sus muchachos acampavam desde as 2 da manhã à porta do Centro de Saúde de Valhelhas mendigando uma consulta de dermatologia, o público, inerme e sem voz, aceita a miséria como um destino e o opróbrio como uma herança colectiva que se deve agradecer. E venha daí mais uma raspadinha!

Impantes, nédios e felizes, estes discípulos de Sócrates (o da Ericeira, não o de Atenas) torcem o adjectivo estrutural com a mesma intrépida desenvoltura com que dobram a verdade, o dorso, a vergonha e o pudor: não descansarão enquanto não conseguirem pendurar mais esse adjectivo, entre trousses e peúgos, naquele seu estendal articulado nas traseiras do Rato, onde vão balançando, secos e hirtos, a democracia, a decência e todos os vocábulos que a sua sanha exauriu por entre “o regular funcionamento das instituições”.

No momento em que são já 2 os milhões de concidadãos nossos em risco de pobreza, empurrados para tendas sob viadutos e refeições dispensadas pela caridade, Marcelo – o mesmo que, aquando da tomada de posse, prometeu vigilância atenta – passeia o seu ar pesaroso por mui nobres e amareladas passadeiras de tibieza enquanto se desmoronam os pilares do Estado; Augusto Santos Silva – um cruzamento tão improvável entre o olhar arguto e penetrante de uma preguiça e a insolência eréctil de um suricata que a moderna zoologia começa a duvidar do evolucionismo – usa a assembleia legislativa do país como seu logradouro particular e António Costa, mimando ao espelho trejeitos que apenas a gravitas concede, vai atirando aos seus podengos novas peças adjectivais que eles abocanham, mastigam e regurgitam a pedido.

De orelha espetada, abanando a cauda, saltitam de felicidade largando pinguinhas de urina pelo lajedo por lhes ter sido concedido acudirem a his master’s voice, e é vê-los de cara à banda como o canito do logotipo da editora discográfica, incapazes de perceber a melodia do gramofone, mas lestos a atirarem-se às canelas de quem desafiar, não a palavra (porque a não tem), mas a voz do dono.

Quando a noite vier, encontrar-nos-á sem surpresa juntos, em busca de um abrigo para o mundo, “pois é preciso saber que a palavra é sagrada / Que de longe muito longe um povo a trouxe / E nela pôs sua alma confiada”, enquanto aquelas criaturas continuarão a uivar, ofegantes e temerosos, cheirando sofregamente o traseiro dos mastins da matilha.