No rescaldo das eleições norte-americanas, lemos e ouvimos inúmeras análises que assumem homogeneidade na sociedade e nos comportamentos políticos dos eleitores. Todos os democratas partilham uma única ideologia, ultra-progressista nos valores e de centro-esquerda na economia, enquanto todos os republicanos coincidem numa visão do mundo conservadora, anti-woke e que quer maximizar o individualismo económico em todas as áreas da sociedade. No entanto, vale a pena analisar a heterogeneidade das coligações e as tensões que estas enfrentam. Ao longo das últimas semanas, ficaram à vista inúmeras contradições ideológicas e comportamentais de ambos os lados.
Do lado Democrata, uma das contradições mais evidentes é a coexistência de uma ideologia progressista redistributiva, que afirma querer corrigir as desigualdades socioecónomicas, com um eleitorado que contém grande parte dos vencedores da economia actual, aqueles que são altamente educados e têm rendimentos elevados na economia do conhecimento. Num trabalho recente, Piketty chamou a esse eleitorado a “esquerda Brahmin”. Muitos outros já demonstraram que a educação se tornou a grande clivagem actual da política norte-americana. E, ainda que Harris tenha ganho a maioria dos mais pobres (aqueles que ganham menos de 30 mil dólares por ano) e mais de 45% da classe média (entre 30 mil e 100 mil dólares anuais), também é claro que os Democratas ganharam por 4 pontos percentuais aqueles que ganham mais de 100 mil dólares e mais de 200 mil dólares por ano (as classes médias-altas e altas).
Como tal, há uma pergunta que os Democratas terão de fazer, caso queiram recuperar eleitorado no futuro: porque é que têm vindo a perder terreno entre as classes trabalhadoras e classes médias, quando as suas propostas são, em abstrato, para seu benefício? Esta é a contradição central que o partido Democrata terá de resolver. Acredito que a tendência recente de perda de votos entre as classes médias será, em parte, explicada pela multidimensionalidade da política (há muitos motivos para o voto, incluindo razões culturais). Ainda assim, se querem ganhar eleições, e se realmente acreditam na ideologia que professam, os progressistas norte-americanos terão de conseguir utilizar a mesma multidimensionalidade da política para reconquistar e realinhar algum deste eleitorado.
Ainda do lado Democrata, a outra grande contradição prende-se com a coexistência de uma ideologia liberal com uma visão do mundo grupal assente em identidades colectivas. Em abstracto, o liberalismo norte-americano assumia a escolha individual de estilos de vida, ideias e valores. No entanto, na sua prática concreta, e principalmente na última década e meia, o partido Democrata foi assumindo crescentemente a ideia de identidades colectivas e baseadas no grupo (seja a nossa etnia, origem nacional, género, preferência sexual, religião e todas as suas intersecções). Assumiu que estas identidades colectivas ditam, de forma quase determinística, o que as pessoas dentro do grupo pensam, escolhem, como veem o mundo e, mais relevante para o assunto em questão, como votam. Desde sempre rejeitei esta premissa, como rejeitei ideias de que a demografia era destino. A frase tantas vezes ouvida – “com as mudanças demográficas em curso na América, o partido Republicano poderá nunca mais ganhar o voto popular” – sempre foi profundamente ignorante. Em primeiro lugar, assume que as plataformas políticas dos partidos e os seus candidatos não mudam ao longo do tempo, bem como a inexistência de eventos exógenos transformadores. Em segundo lugar, assume que os blocos demográficos votam em grupo e que os indivíduos que fazem parte desse grupo não têm eles próprios ideologias mais liberais ou mais conservadoras por uma miríade de razões particulares.
Assim, nesta eleição, muitos ficaram surpreendidos com o facto do eleitorado hispânico se ter dividido ao meio pela primeira vez na história (55% votou Harris, 43% votou Trump). Na verdade, para quem acompanhava as tendências neste eleitorado ao longo da última década e para quem prestou atenção aos seus valores e opiniões, este fenómeno nada tem de surpreendente. Académicos que estudam o eleitorado hispânico já haviam apontado que, em 2020, mais hispânicos votaram no partido Republicano do que em anos anteriores. A razão é simples: muitos destes eleitores estão progressivamente a alinhar as suas preferências políticas reais com o seu voto, numa tendência secular clara. Na verdade, muitos destes eleitores que anteriormente votavam no partido Democrata (por legados históricos) sempre estiveram mais próximos do partido Republicano do ponto de vista ideológico, quer em valores culturais (família, criminalidade, religião) quer económicos (impostos e políticas de apoio a pequenos empresários). Esta mudança está para ficar. Da minha parte, considero uma alteração positiva. É bom que a política norte-americana se faça entre dois partidos com bases multiétnicas, ao invés de se tornar num confronto entre um partido multiétnico versus um partido branco. Do ponto de vista normativo, creio também ser positivo que o eleitorado vote de forma congruente com as suas opiniões e que a política se faça com base na ideologia e não na etnia.
Em certa perspectiva, 2024 foi o fim da era Obama no partido Democrático. Entre 2008 e 2024, o partido tentou mobilizar uma coligação particular de grupos demográficos para ganhar eleições. Por vezes ganhou, por vezes perdeu. No entanto, esta evolução política coloca um desafio profundo ao partido Democrata: terá de perceber que, ao deixar de ter eleitorados garantidos pela sua demografia (agora os hispânicos e asiáticos, no futuro algum eleitorado negro), a reacção necessária será construir uma coligação com base numa nova combinação ideológica capaz de aglutinar uma maioria.
Para a semana, continuarei com as contradições e tensões que o partido Republicano enfrenta.