As dificuldades da democracia actual não acabam. Da primeira vez referi as da democracia portuguesa, que são muitas e antigas. Mas outras há de natureza geral. Não são específicas do nosso país. Nada disso; são gerais e cada vez mais complicadas. É bom dizer isto, não me vão chamar reaccionário ou pior, coisa que, acrescento, nem ouço.

Mas vejamos. As coisas são muito sérias. O que é preciso é saber se a democracia, tal como a conhecemos ou julgamos conhecer, é compatível com a sociedade em que vivemos. Vistas as coisas assim, as perspectivas não são boas, nem são más, o que é preciso é compreender.

A democracia é um regime político muito complexo. Não se limita ao mínimo ou seja, ao depósito do nosso voto dentro de uma urna para esclarecer quem nos vai representar. Já nos seus inícios assim era e hoje mais do que nunca. A democracia é hoje o regime da incerteza, da dúvida e da hesitação. Ninguém pode ter em democracia uma relação privilegiada com a verdade. Tudo é questionável e incerto e em constante revisão. Todas as soluções são contingentes e reformáveis. É natural. Em linguagem «sistémica», de que não quero abusar, a sociedade actual integra um conjunto diversificado de sistemas e subsistemas cada um deles relativamente autónomo e puxando para o seu lado. Uma concepção global e unitária? Holística como dizia Popper? Hoje, só os comunistas a têm ou julgam ter. Não tenho inveja nenhuma, antes pelo contrário. Mais vale saber lidar com a incerteza do que ter certezas que só conduzem ao desastre.

Outra das dificuldades da democracia é de natureza temporal. Os partidos querem ganhar as eleições e consequentemente pensam só a curto prazo. As eleições vivem do e para o curto prazo. As dificuldades ficam para quem vier depois. Ora, as questões mais importantes como a protecção do ambiente, a sustentabilidade do sistema de pensões, a transição energética, o envelhecimento da população, a imigração descontrolada, a qualidade do ensino e da saúde e tantas outras requerem uma perspectiva de longo prazo e sobretudo intergeracional. Como conciliar isto com os ambiciosos resultados eleitorais? Não se pode exigir dos partidos que se preocupem com os resultados a longo prazo em vez de com as eleições.

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Acresce a isto que a natureza das questões sobre que o legislador tem hoje de tomar posição desloca o peso político do parlamento para o governo. O governo é cada vez mais o órgão legislador e, havendo maioria absoluta, esta realidade é particularmente nítida. Por sua vez, como o governo depende dos partidos que o apoiam, as leis são cada vez mais feitas nas sedes dos partidos em vez de no parlamento. Este apenas ratifica o que já ficou decidido fora dele. Ora, numa democracia sã não é assim. A questão é muito simples. Numa sociedade complexa, aberta e interdependente, é impossível esperar da representação política aferida pelas eleições parlamentares o que dela se esperava. As questões são demasiado complexas, longínquas e inacessíveis. E ninguém sabe o suficiente. O que se diz é agravado pelo facto de hoje a decisão política vir de instâncias supranacionais e internacionais nas quais os procedimentos democráticos deixam muito a desejar, muito embora estejam hoje bem melhores, no âmbito da União Europeia, do que já estiveram.

Finalmente, a democracia não é só o regime «do povo e pelo povo» mas também, na célebre frase de Lincoln no seu discurso de Gettysburg, em 1863, «para o povo». Não importa apenas a legitimidade da origem da maioria que decide trazida pelo voto, importa também o resultado da governação da maioria ou seja, a legitimidade não é apenas de origem, é também de exercício, e esta depende da quantidade de bens e serviços de toda a espécie que a maioria consegue prestar. Esta realidade tem particular peso num contexto, como o actual, em que o cidadão está esmagado por uma fiscalidade expropriatória. Não importa só o input eleitoral mas também o output. O estado actual se quer ser democrático tem de ser um óptimo gestor. Como sê-lo? A questão é difícil, mas uma coisa é certa: não é com as tão portuguesas nomeações governamentais dos gestores públicos nem com um vasto sector público empresarial a tender para ser improdutivo que se resolve.

Tudo junto, é com isto que a democracia tem hoje de se defrontar. E a confusão que reina na política actual aumenta com as diferenças funcionais dos vários sistemas que integram a sociedade, com o cada vez maior número de protagonistas, cada vez mais internacionais e supranacionais e com a profusão dos interesses divergentes.

A vastidão das questões é hoje inabarcável. O que coloca problemas de inteligibilidade. Há uma geração não era assim. Os assuntos eram acessíveis a todos e possibilitavam a opinião pública. «Ele há questões terríveis…a prostituição, o pauperismo…», avisava o Cons. Gama Torres, personagem do Conde d`Abranhos do nosso Eça. Só que hoje as questões são muitas mais, e bem mais difíceis. Como tomar posição nos problemas energéticos e ambientais, nas alterações climáticas, na convivência multiétnica, na manipulação genética, na transexualidade, nos direitos dos animais, na protecção de dados pessoais e nos choques culturais? Os cidadãos comuns não chegam lá e os eleitos porque diabo hão-de chegar? E como, se estes últimos percebem do assunto menos do que nós e são cada vez mais ineptos e comprometidos? A questão já é de indecidibilidade ou, melhor dizendo, de ingovernabilidade. Os partidos e os sindicatos já não podem exercer plenamente as funções de medianeiros entre os cidadãos e a política. E não se pense que o recurso à técnica e aos pareceres dos doutos resolve a questão. Pelo contrário, agrava-a, sabido como é hoje que também a técnica não é imparcial. Alguém se esqueceu do que foi o triste espectáculo dos encomendados pareceres contraditórios de uma série de especialistas sobre a questão dos malefícios da co-incineração? Ou do novo aeroporto de Lisboa? Ou do acesso rodoviário a Cascais?

Confiar na emoção também não é seguro. O Doutor Damásio no seu livro O Erro de Descartes atribuiu ao pai da filosofia moderna a ignorância do papel das emoções na compreensão das coisas. Só revelou que o não conhecia. Afinal o erro não era de Descartes, era de Damásio. Os clássicos já sabiam muito bem que as emoções facilitam a compreensão, mas também sabiam que por si só não chegam.

A situação é muito difícil. A democracia não é só um processo; é a capacidade de reflectir e escolher sem coacção e livremente entre alternativas. Precisa da informação. Mas o excesso de informação em vez de a facilitar só a dificulta. O acesso à informação não equivale à formação necessária para a seleccionar e sobre ela reflectir. A informação que nos chega todos os dias em catadupas não resolve as coisas. O ruído informático prejudica até uma visão ponderada e equilibrada das coisas. É muito difícil ao cidadão comum processar tanta informação, mormente se ele não tiver a formação necessária para tanto. É irrisório pensar que o cidadão comum pode perceber tudo a que tem acesso no funcionamento da sociedade e da política. Não pode.

A política hoje vive de interpretações, alternativas e opções. Mesmo que não estejam todas ao mesmo nível, é difícil ao cidadão comum orientar-se. Perante tanto desconchavo o cidadão comum sente-se afastado e inseguro. Tudo parece nada ter a ver com ele refugiado, coitado, na sua vida privada, enquanto lhe não baterem à porta com o imposto, a coima ou a publicidade, porta essa que, compreensivelmente, tem cada vez mais medo de abrir. Do correio hoje só se esperam hoje más notícias.

Temos de aceitar esta realidade porque a democracia hoje vive no meio da insegurança e da hesitação. Ninguém pode ter certezas absolutas. Têm-nas seguramente as sras. Mortágua e o sr. Raimundo. Mas as certezas são hoje, mais do que nunca, incompatíveis com a democracia. Quanto mais certezas houver, menos democracia há. Esta evidência foi muito bem aproveitada pelos comunistas e pelos fascistas de antanho. Arranjaram um princípio uno de explicação para tudo e a ele tudo reduziram, claro está que através de uma feroz ditadura. Não havia dúvidas, só certezas.

Nova ordem global? Que ilusão. Vivemos é numa nova desordem global e as possibilidades de dela sair não são muitas. O edifício teórico e moral da modernidade iluminista desabou. Desde muito jovem que tinha a noção que ia ser assim.  Um amigo meu dessa época, e ainda de hoje, que não era especialmente culto nem esforçado, mas a quem sobrava inteligência, concordava.

Num espaço político tão vasto como a actual, a representação política parlamentar e governamental não é tudo. Pelo contrário. A democracia actual tem de ser deliberativa e não apenas representativa. Isso significa que deve valorizar as correntes de opinião e os movimentos informais, de protesto ou de apoio ou seja, as formas de oposição extra-parlamentar, naturalmente que apenas as pacíficas, quase sempre oriundas de minorias, pois também elas constituem a opinião democrática a levar em conta. Há mais protagonistas a levar em conta do que aqueles que elegeram a maioria e os procedimentos adequados para os ouvir não se resumem ao voto. O voto simplesmente reúne as vontades e esclarece assim qual foi a maioria numérica mas não garante por si só que todos os argumentos sejam adequadamente levados em conta. Não importa se as soluções finais são melhores do que as tomadas apenas pela maioria ou pelos técnicos; o que importa é que são mais válidas porque mais inclusivas e deliberadas. Teremos assim uma constituição verdadeiramente constituinte e não apenas constituída, atenta ao que se passa na rua e não apenas em S. Bento.

Que fazer então? Arrear? Nada disso. Aceitar apenas que a democracia só pode ser hoje o regime do bom-senso. E a reflexão organizada é o único instrumento para lá chegar. É apenas a reflexão que nos pode levar ao bom-senso. Chegar lá é a única opção para tomarmos posição nas questões difíceis que se nos apresentam. O bom-senso vive de uma visão global das questões e da respectiva importância. Não podemos transformar o cidadão num especialista ou seja, em alguém que sabe cada vez mais de cada vez menos. Não lhe é exigível e seria mesmo contraproducente porque lhe vedava a visão geral das coisas de que ele precisa. O bom-senso basta-se com a probabilidade racional das soluções levando em conta o maior número possível de variáveis. Mais longe não podemos ir e já é muito.

Estamos sozinhos? Não. Temos é de aprender uns com os outros. Isso é que é a democracia. Organizar o entendimento possível em torno de procedimentos decisórios adequados e no interior de instituições credíveis, abertas e inclusivas e sem coacção. Não se pode pretender outra coisa. A democracia tem de ser deliberativa e racionalizada. Dizia Durkheim que a democracia é a forma política da reflexão. E mais, a controvérsia faz parte da democracia. Uma coisa é certa; não se pode chegar a soluções indiscutíveis pois a dúvida faz parte do resultado do procedimento democrático. Este tem de ficar pelo mínimo aceitável sem pretender chegar ao máximo que dá sempre asneira pois que deixa forçosamente pelo caminho metade ou mais dos intervenientes. Nada disto é sintoma de pessimismo ou de negativismo. Pelo contrário, é manifestação de realismo e de respeito democrático pelo próximo que é como quem diz, pela diferença que ele traz consigo.

Quem disser que não tem dúvidas está a excluir-se da democracia própria da época actual. Esta é a democracia da razão, da razão razoável, não da razão absoluta. Afinal, aceitar a dúvida é sintoma de inteligência e cultura. É que a democracia não é a aclamação de nada porque hoje o bem comum é uma noção tão difícil e complicada que não está ao alcance de qualquer um.

Só os burros e os incultos, tão numerosos no nosso país, não têm dúvidas. Mas para conviver com esta realidade é preciso formar não apenas os eleitos, mas também os eleitores, ou seja, construir o eleitorado através de processos descentralizados e locais que lhe permitam aceder à participação. Uma democracia de cidadãos, não apenas de votantes. No nosso país não vai ser fácil pois que abundam por cá os selvagens. Já não existem os tradicionais marialvas, mas há piores ou seja, ruidosos motards, tão estimados pela polícia, cretinos informáticos, radicais acéfalos, hooligans e sem esquecer os «famosos», os comentadores televisíveis, os «humoristas» sem qualquer talento, e os machos portugueses, perna curta, peludos, ciumentos e espancadores. Todos estes julgam que a democracia consiste só em ir colocar o voto na urna.