Não é fácil decidir se a culpa é do país, do regime ou dos bandos, no plural ou no singular, que tomaram conta disto na maior parte de quase meio século. A verdade é que Portugal não é respeitável. E não é respeitável na exacta medida em que, com a subserviência interessada dos empresários, a conivência pasmada dos “media” e o fascínio pelo Estado de uma curiosa “sociedade civil”, certas forças e personagens políticas beneficiam de uma impunidade que, por definição, abre as portas à prepotência, à inépcia e à corrupção.
Por cá, os governantes, principais e acessórios, não são avaliados em função do seu desempenho, mas em função da ideologia que o precede. Se calha de serem situados à “direita”, em geral por outrem e nunca pelos próprios, a avaliação é imediatamente negativa, excepto nos casos e nos momentos, não demasiado raros, em que a “direita” presta vassalagem ao adversário. Se, como é costume, são de esquerda, sucedem-se as vénias antecipadas a um “trabalho” (digamos) que invariavelmente se distinguirá pela brutal falta de juízo, rigor, decência e vergonha. E sobretudo escrutínio. À imagem das figuras dos “reality shows”, conhecidas apenas por serem conhecidas, inúmeras figuras da política caseira são, salvo seja, reverenciáveis apenas porque as consideram assim.
Para dar um mero exemplo e não sair, cruz credo, do Partido Socialista, a história do PS e dos líderes do PS é uma sucessão de prodígios cuja única fundamentação consiste no facto de se estabelecer na “opinião pública”, sem direito a grande refutação, o gabarito evidente e prévio de tais criaturas. Se esmiuçarmos as criaturas, porém, percebe-se que os motivos de tamanhos louvores são um mistério fascinante, ou uma revelação deprimente.
Não importa, nunca importou que Mário Soares passasse as últimas décadas de vida a aplaudir tiranias. Não importa, nunca importou que Vítor Constâncio fosse uma insignificância sem escrúpulos. Não importa, nunca importou que Jorge Sampaio fosse uma relíquia do marxismo ortodoxo. Não importa, nunca importou que António Guterres fosse um monumento ao vácuo. Não importa, nunca importou que Ferro Rodrigues fosse Ferro Rodrigues. Não importa, nunca importou que José Sócrates fosse um egomaníaco responsável pela institucionalização da trafulhice. Não importa, nunca importou que António Costa fosse um profissional da pequena intriga e um amador da língua. Para o discurso dominante, foram, respectivamente, o pai da democracia, um portento da economia, um homem bom, um génio diplomático, um Ferro Rodrigues, um salvador, um supremo estratega.
Alguns viram-se legitimados pelo voto, outros nem por isso. Em qualquer dos casos, a legitimidade de todos para mandar dependeu sempre menos de eleições do que de convenções: convencionou-se que os socialistas acima, junto com inúmeros socialistas diluídos ou concentrados, oficiais ou oficiosos, e de distintos graus de notoriedade e cumplicidade, merecem tomar conta de nós. Esta vasta teia constitui, garantem-nos, uma “elite”, uma “elite” que só o é na medida em que nos garantem sê-lo. No contexto, a mera palavra arrepia. E as críticas à “elite” que a admitem enquanto tal arrepiam duplamente.
Ainda que crítico, o reconhecimento da “elite” é uma forma de legitimação. Aquilo de que Portugal padece é da submissão a um escassamente recomendável conjunto de indivíduos, arregimentados em bandos e movidos por interesses comuns, não por acaso alheios aos interesses do cidadão comum. O pormenor de o cidadão comum ignorar a contradição e a submissão ser parcialmente voluntária não modifica a natureza do arranjo: o arranjo é nocivo, e para funcionar implica o lendário respeitinho, o “cimento social” que teimamos em não largar. Dito de maneira diferente, a esquerda, já de si propensa a consagrar-se através de dogmas, mitos e beatificações, ergue estátuas, metafóricas e ocasionalmente literais, por Portugal em peso – o que resta ao resto fazer?
Resta ao resto rir. Não há gesto tão repulsivo quanto o de rir com as “elites”, nem tão digno quanto rirmo-nos delas. Não que rir seja o melhor remédio, o pior remédio ou sequer um placebo sofrível. Acontece que o riso é um reflexo inevitável perante determinado tipo de situações grotescas de que esta bonita choldra é praticamente o padrão. Olhe-se em volta, sem olhos de quem integra ou sonha integrar a choldra. Veja-se os Costas, os Marcelos, os Césares, os Rios, as Catarinas, os Jerónimos, os Louçãs, os Ferros, os Salgados, os Mendes, os Pachecos, os Santos, os Silvas e toda a sorte de bonequinhos que, mais por apatia nossa do que por engenho deles, fazem da paróquia o seu quintal. É possível conter o riso face a semelhante ramalhete?
Às vezes, sim. Às vezes, o ramalhete e as descaradas rábulas do ramalhete inspiram uma coisa entre o embaraço e a depressão. Com frequência, deviam inspirar galhofa, galhofa pura, cristalina, imaculada. O que influencia as variações de inspiração? O pormenor de uma pessoa manter uma réstia de optimismo ou dar Portugal por perdido. Na presunção de que não há hipótese, uma pessoa liberta-se do peso da esperança e entrega-se à gargalhada. É que se isto não tem salvação, isto tem graça. E o som do escárnio é a perfeita banda-sonora do fim, que talvez fosse provável e que será, por obra das “elites” (risos), inevitável.