Não tenho por hábito responder às insinuações, deturpações e mentiras que se dizem sobre mim e sobre o meu trabalho em blogues e nas redes sociais. Mas as que José Neves propaga são, ao que me consta, insistentes, enganadoras e muito difundidas, pelo que não podem passar sem resposta pronta. Parece que em recente post no facebook o meu colega historiador terá transcrito uma passagem de Os Sons do Silêncio, um livro meu, publicado pela ICS em 1999. Nessa passagem eu disse que Portugal, o país pioneiro do tráfico transatlântico da escravatura e o administrador do Brasil e de Angola, respectivamente os maiores importador e exportador de escravos através do Atlântico, ou deixou por muito tempo quase em branco essa página da sua história ou, o que é pior, preencheu-a com uma manipulação da verdade e reservou para si o papel mistificador de pioneiro do anti-escravismo.

E, com base nessa passagem, José Neves sugere, sem demonstrar, que eu seria contraditório e incoerente, e que teria mudado radicalmente de ideias, de 1999 para agora. De facto, e na medida em que tenho por diversas vezes afirmado que houve, sim, no Portugal do século XIX, um debate público sobre a escravatura, parece que essas minhas afirmações de hoje não batem certo com aquilo que Neves transcreveu. Mais. Tendo em consideração que eu tenho criticado fortemente as pessoas que se dedicam a zurzir o passado escravista do país, e que as acuso de serem politicamente correctas, de extrema esquerda e flagelantes, poderá parecer que antes, em 1999, eu teria feito exactamente o mesmo que agora critico. Mas não há qualquer contradição nem virei a casaca. José Neves cortou e citou só o que convinha ao seu truque de sugestão e ilusionismo. É que no parágrafo em causa eu não estava a referir-me a Portugal, como país, nem à opinião pública portuguesa. Também não estava a referir-me aos debates nas Cortes nem à imprensa ou à literatura. Estava a referir-me apenas à historiografia e aos historiadores portugueses. Isso é dito logo na parte inicial do parágrafo, que José Neves convenientemente suprimiu, tal como na extensa parte final do parágrafo imediato, que igualmente ignorou, como ignorou o parágrafo seguinte onde digo que, a partir de 1974, graças aos historiadores José Capela e Valentim Alexandre, a história da abolição do tráfico de escravos português começou finalmente a sair das brumas e a demolir os mitos que envolviam o assunto. Não vou cansar os leitores com a transcrição dos parágrafos em causa, que estão nas páginas 13 a 15 desse meu livro de 1999, mas quem tiver interesse poderá lê-los aqui, na íntegra (deixei em itálico a parte que José Neves citou e ficou em bold tudo o que optou por não citar).

Tudo indica que José Neves fez o conhecido truque de tirar a frase do seu contexto e, assim, ela adquiriu um significado diferente e muito enganador. Mas pode dar-se o caso de o meu colega historiador nem sequer ter lido o meu livro (460 páginas dão algum trabalho a ler) e ter citado o que citou porque uma qualquer mão amiga lhe terá feito chegar esse excerto já devidamente truncado e fatiado. A ter sido assim o quadro não melhora. Os historiadores devem certificar-se da fiabilidade das suas fontes; essa é uma regra básica do nosso métier.

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