A dimensão desta pandemia é acompanhada com relatórios diários de situação e sente-se no ar uma gigantesca colaboração nacional. O resultado hoje é um país suspenso que procura sobreviver num drama nunca visto. A linguagem da guerra é apropriada e não pode ser entendida apenas como metáfora nos discursos políticos. O universo do sofrimento mede-se sanitariamente e tem repercussões sociais neste momento incalculáveis. Nenhuma geração portuguesa viva viveu uma guerra contra uma epidemia tão global. Esta é a primeira, mas ao contrário das guerras clássicas, apresenta-se sem qualquer exército, sem qualquer treino, sem qualquer preparação, sem qualquer histórico. Tudo é novo e inesperado o que reforça o nosso sentimento de compreensão e de solidariedade na nossa comunidade. Mas essa compreensão tem prazos e tem limites. Tem uma duração variável. No plano da curva epidemiólogica quanto mais ela crescer maior serão os silêncios que abafam o som das revoltas que crescem entre os cidadãos, as famílias e as empresas. Quando essa curva baixar de pouco valerá a compreensão pelas medidas de contenção que nos isolam ou a apreciação pelo esforço de gestão de uma Situação de Emergência em que mais do que travar, é necessária para garantir os movimentos mínimos e urgentes para que o país não passe da suspensão alargada ao lockdown completo.

O diário desta guerra tem sido polarizado entre medidas de contenção do vírus e medidas económicas. Enquanto as primeiras são globalmente aceites e até aplaudidas e o Governo corrige os erros rapidamente alegando ajustar gradualmente as medidas, no plano económico e social o desastre é completo e põe a nú a sua performance num período de emergência nacional fazendo do grosso das medidas anunciadas simulações de apoios, gerando um jogo de espelhos em que o que é anunciado como apoio numa portaria quando se aplica à realidade é um apoio muito fraco e irrelevante ou muito difícil ou até impossível de obter. Revela também que a equipa governativa tem aqui um derradeiro teste: o de saber se estará verdadeiramente à altura de evitar um colapso social e por conseguinte ser arrastada para o seu próprio fim. Numa semana de anúncios de medidas de pretenso apoio podemos agrupá-las numa palavra: adiamento. Adiamento nos pagamentos e contracção de mais dívida, que na prática é também um adiamento.

Nesta semana, o Governo foi incapaz de dizer aos portugueses que estaria disponível para baixar um imposto que fosse: preferiu dizer que podiam pagar mais tarde! Preferiu também dizer que os bancos são o grande recurso atirando todos para a contração de empréstimos de despesa corrente, cujas taxas e carências são tão atrativas que a pressão do aumento do stock da dívida de empresas e famílias subirá exponencialmente. Enquanto isso até agora o Governo foi incapaz de anunciar corte na despesa com pensões e vencimentos na função pública, entre outros cortes na Administração e no investimento público, o que não se percebe. Se o país tem que fazer um esforço de guerra como é possível que pensões e salários de milhares de euros se mantenham intocáveis nestes meses de guerra e querer cortar 34% dos salários aos trabalhadores e só do sector privado? Como é possível ter querido que as empresas acorram para um layoff em que se tinha que pagar primeiro as férias anuais aos trabalhadores para terem apoio superior a um mês, ou lançar medidas baseada em balancetes e declarações de iva periódicos ainda por realizar e em fiscalizações futuras, quando se sabe que já há sectores completamente paralisados, sem respostas práticas por exemplo para pagar salários para a semana porque nas últimas duas semanas deixaram de vender o que quer que fosse? Como exigir períodos trimestrais e depois mensais (de portarias que corrigem outras dois dias depois) quando todos sabemos que o tsunami já está a acontecer? Medidas simples e imediatas dão confiança e reforçam o sentimento de comunidade, tal como está a acontecer ao nível sanitário em que todos acreditam na importância do que estão a fazer.

O Governo devia simplificar seriamente e não construir um novo sistema de análise para se perceber quem está mesmo parado! É muito fácil de apurar quais são os sectores que pararam, primeiro pela dinâmica da economia e depois por decreto do governo. Também é fácil perceber os que só diminuem vendas e os que até crescem nas vendas e anunciar medidas claras e objectivas. Esta pulsão para novas burocracias está a exigir formulários, atrasos na recepção dos casos como aconteceu esta semana com os pedidos de apoio á família ou a tornar inoperacional as portarias por falta de regulamentação da Segurança Social.

O Governo devia de implementar um processo simples e directo e conter a sua tradicional pulsão “burocrática” e simplesmente legislar para três meses cortes especiais de pelo menos 50% nas contas da água, luz, comunicações, prestações bancárias e rendas, dividindo assim o esforço, e eliminar pura e simplesmente a TSU nos meses em que os trabalhadores não trabalham. É imoral o Governo pedir às empresas que partilhem 34,5% de uma riqueza supostamente gerada por um corpo do trabalho que ficou em casa e por isso essa riqueza não aconteceu. O Governo deve procurar os bancos para se financiar também a si próprio (leia-se o Estado) e ajudar as empresas nos salários com um valor fixo por trabalhador enquanto estiverem completamente encerradas, em vez de anunciar os bancos para os outros ou ligar o “complicómetro” nesta altura de guerra (só a complexidade do apuramento do que se vai ou não pagar é gritante, tal como o impedimento prático aos apoios de quem tem ivas trimestrais atira as pequenas empresas para a falência certa). Este é o momento para esquecermos (pelo menos um trimestre) o tão sacralizado equilíbrio das contas públicas gerado por uma Europa rica, mas hoje em dificuldades, pois sem equilíbrio social não haverá consumo nem a crise terminará: deixará de estar apenas concentrada ao nível da nossa saúde. A ironia disto é que a tese dos incentivos ao consumo era a tese de Centeno no pós-troika e é um governo pós-troikista que agora tem que ter a coragem de tomar medidas equilibradas socialmente e que não ponham portugueses contra portugueses. No quadro desta pandemia o perigo das fake politics é ainda maior do que o das fake news.

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