A poeira está no ar, as notícias são inundadas pelas manifestações diárias da função pública, pela guerra no leste europeu, pelas polémicas em volta dos arrendamentos coercivos, pela inflação e pelas subidas diárias das taxas Euribor e no que isso já estará a impactar as famílias portuguesas. A verdade é que tudo nos tem distraído e por vezes cai em esquecimento de que temos um Plano de Recuperação e Resiliência para cumprir.

São 14 mil milhões de euros para executar até 2026 e o foco da Europa com a atribuição destas verbas centralizou-se inequivocamente nas questões em volta do ambiente. Para isto, é salvaguardado através do Regulamento do Instrumento de Recuperação e Resiliência, que 37% do valor global seja afeto a reformas e investimentos que contribuam para o combate às alterações climáticas. Irá ainda mais longe pois na verdade exige-se que todos os investimentos respeitem o princípio de não prejudicar os objetivos ambientais.

É evidente a necessidade de tornar urgente as temáticas de ESG (Environnmental, Social and Corporate Governance) no epicentro da Europa. Não só por ser aqui que se concentra o maior volume de países desenvolvidos por metro quadrado e a responsabilidade que daí advém, como também sabemos que é aqui que se encontram as condições para darmos esse passo, que inevitavelmente tenderá a ser seguido pelo resto do mundo. Os primeiros passos já foram dados e estamos a velocidade de ponta, seja em termos de regulamentação que está a ser imposta às empresas, seja ao nível dos critérios para atribuição dos fundos Europeus e na extensa regulamentação que em meados de 2025 e 2026, obrigará muitas organizações a repensar os seus modelos de negócio e a forma como exercem as suas atividades.

Mas o caminho não pode ficar por aqui e temos de exigir mais. Percebem-se os objetivos climáticos da Europa com o Plano de Recuperação e Resiliência, mas não podemos querer fazer o 2 em 1 sem nos preocuparmos com as famílias. O PRR será executado precisamente em anos onde era preciso outro tipo de intervenções nos bolsos das famílias europeias, em particular das portuguesas, e o que temo é que as preocupações climáticas se sobreponham às necessidades de sobrevivência diária das famílias, nomeadamente na temática da Saúde, Educação e Habitação.

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Conhecemos bem o caso português e sabemos que estamos a lidar com uma situação em que, apesar do rendimento liquido das famílias portuguesas ser muito inferior à maior parte dos países europeus, as taxas Euribor são iguais para todos. Sendo assim, uma das questões a fazer será:

Se os salários portugueses são menores que os europeus porque as Euribor são iguais para todos os países?

Essa é uma questão para a qual procuro resposta há algum tempo e para a qual tenho vindo a constatar que tendo preços de habitação similares aos países do centro da Europa, não faz sentido que a nossa taxa de referência seja a mesma, pois caso contrário, caminhamos para um empobrecimento do país, pelo facto dos nossos salários serem francamente inferiores em comparação com os outros estados-membros. Se queremos estar na vanguarda europeia no que diz respeito à neutralidade carbónica entre outros aspetos, porque não trazer as famílias de arrasto e melhorar um pouco a nossa qualidade de vida? Não podemos querer ser maus cá dentro mas bonzinhos à vista dos povos europeus.

É nesta temática que considero que a Europa estará a falhar redondamente no PRR, pois salvo iniciativa do governo, que aliás também poderá fazer muito mais do que está a fazer, o que acontece é que o investimento dos fundos atribuídos não se traduzirá numa medida imediata que incida numa melhoria da qualidade de vida no que ao aspeto financeiro das famílias diz respeito.

Muitos dos portugueses têm a errada expetativa de que o PRR vai salvar a economia e em particular os seus bolsos mas isso não vai acontecer, seja pelos objetivos ambientais intrínsecos, seja pelo facto de que está mais que visto que a par dos consecutivos orçamentos aprovados nos últimos anos, não irá ser executado na sua totalidade. Sim, iremos ter “cativações” e incapacidade de execução do dinheiro que a Europa nos atribuiu, montantes esses que dariam para salvar muitos bancos e companhias aéreas.

Ainda vamos a tempo de corrigir o problema através de outros mecanismos interpostos através da iniciativa europeia ou mesmo nacional, mas não podemos deixar de criticar a forma como são despejados tantos milhões na economia, com uma visão adequada da sustentabilidade a longo prazo, mas sem pensar no curto e médio prazo das famílias. Lembro que o PRR é despoletado pela crise económico-financeira que adveio da pandemia e agora da inflação e o que a Europa fez, foi o 2 em 1, tentando camuflar um mecanismo de apoio à economia, resolvendo em simultâneo o atraso que tem em muitas metas a que se comprometeu no acordo de Paris, conforme demonstra o índice Climate Action Tracker, pelo menos até 2021 (altura em que é anunciado o PRR). Nessa altura, países como a Gâmbia, Marrocos, Costa Rica, Etiópia ou Quénia, já estavam com metas quase que suficientes para cumprir o acordo.

Quero com isto dizer que temos de ir mais longe e terá que haver um impacto direto na vida das famílias e a chave poderá estar na Euribor. É certo que a preocupação ambiental é a palavra do dia nos corredores do Parlamento Europeu e o desafio é que se comece a pensar no parcelamento da Euribor, dando-lhe uma componente verde.

Para os mais desatentos, a Euribor reflete o preço a que os bancos “vendem” o seu dinheiro no mercado interbancário, traduzindo a taxa de juro dos empréstimos que os bancos comerciais da zona euro fazem entre si. Para o cálculo desta taxa, são consideradas as taxas aplicadas por 52 grandes instituições, apurando uma média, que por regra, exclui 15% das mais altas e 15% das mais baixas. A este ponto à que acrescentar a influência gigante do banco central europeu, que mediante a sua política influencia as taxas referência, para que haja mais ou menos liquidez na economia.

Feito este enquadramento, o mote é que o banco central e as entidades decisoras da Europa, comecem a considerar uma componente de Green Euribor nas taxas de referência. Digo isto, porque se o objetivo já demonstrado através das medidas mencionadas, é o ambiente, porque não também alicerçar esta estratégia num apoio direto às famílias.

Com esta abordagem e para que a Europa seja coerente na sua agenda, deverão ser penalizados os bancos que de um ponto de vista do ESG têm um comportamento desenquadrado com os objetivos comunitários, sendo beneficiados através de incentivos, aqueles que mantém uma Governance enquadrada com os objetivos ambientais definidos.

Nesta fase e para que sejam beneficiadas as famílias, cumprindo intrinsecamente o plano ambiental, sugiro o estudo de um mecanismo de apoio centralizado na contratação de créditos a habitação com uma componente de juro apoiada em dois fatores: No ranking ambiental da instituição bancária e no score energético do imóvel a adquirir.

Esta medida seria traduzida num impacto direto para os bolsos das famílias, uma vez que os seus créditos teriam uma componente verde, que fruto dos incentivos europeus aos canais bancários, seria logicamente mais vantajosa. Apesar de parecer complexo, podemos pensar num exemplo prático para um caso de um empréstimo de 200.000 euros. Disponibilizando o Banco Central uma componente de crédito verde às diversas instituições bancárias, que só teriam acesso mediante o cumprimento das metas ambientais definidas, o banco a que contratasse o crédito teria acesso a dinheiro europeu “mais barato”. Com isto, existiria a possibilidade de quando o banco lhe fosse emprestar dinheiro a si, conseguisse parcelar o seu empréstimo em 2 componentes de juro, mediante o score energético do seu imóvel.  Neste caso, imaginemos, teria os primeiros 40.000 euros de empréstimo sujeitos a uma taxa Euribor Green de 0% ou mesmo com juros negativos, sendo o remanescente indexado à taxa Euribor, tal como é nos dias de hoje.

Parece que a Europa quis fazer o 2 em 1, mas podemos fazer o 3 em 1, pois na verdade, para além de resolvermos os problemas atuais em matéria de acesso ao crédito, incentivaríamos a população a adquirir imóveis com melhores scores energéticos, com o consequente impacto no setor da construção, e a Europa ficaria agradecida pelo aceleramento do cumprimento das metas a que se propõe. No final do dia, a Europa cumpria as metas a que se propõe e os povos que aqui habituam satisfeitos com os seus bolsos e com a melhoria da sua qualidade de vida. É possível fazer melhor e para isso só é preciso vontade, agora o que não pode ser feito, é camuflar incentivos à recuperação económica através de mecanismos que por trás têm um objetivo único de recuperar o atraso europeu em matéria de cumprimento das matérias ambientais constantes no acordo de Paris, sem que isso tenha um impacto direto na vida das famílias.