Março de 2020

O sol nasce, o despertador toca, saio da cama…

Já com a mudança de hora programada, mas ainda à espera da Primavera que estava mesmo quase a aparecer e mesmo que com alguma dificuldade, consegui acordar.

Podia parecer estranho o porquê de ser a primeira vez que tinha dificuldade em acordar em 2020, mas como sei que depois daquela só é costume acontecer mais uma ou duas vezes por ano, ergui-me como sempre, preparei-me para o trabalho e lá fui para mais um dia da minha vida.

Podia ser um dia qualquer, daqueles que não aproveitamos para estar com a nossa família, com os nossos filhos, amores, amigos e animais, mas que damos toda a nossa disponibilidade aos nossos colegas e chefias, de forma a viver intensamente o nosso trabalho. Tão intensamente, que a viagem para casa não chega para carregar as pilhas o suficiente para dar atenção a quem nos ama. Daqueles dias que deixamos passar cinco vezes por semana, tentando fazer de conta que não acontecem, saltando de Sábado para Sábado, altura essa, em que sim, começam as nossas semanas.

Porém, a verdade é que assim que entro no carro percebo que não é um desses dias. Afinal nunca tinha estado assim. Aquela dificuldade de acordar não estava só e a dor que sentia desde a ponta dos meus cabelos até aos meus calcanhares começava a incomodar-me verdadeiramente.

Nas vésperas desse dia tinha estado com uns amigos a partilhar, como de costume, alguns temas da atualidade. Abordei, nesse dia, coisas como o ridículo que era a forma como nos importávamos mais com um vírus que matava apenas os Chineses, do que com os Portugueses com necessidades e que, passados anos do evento catastrófico do Pedrógão, ainda não haviam visto reconstruídas as suas vidas, isso se é que alguma vez iria acontecer.

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Não costumo ser pessimista e só encaro os problemas quando eles me batem à porta. Tão pouco pessimista, que quero viver o presente e evitar ao máximo sofrer com o futuro. Não suporto a ideia de saber que um dia devo morrer e se, por um lado, não devemos pensar nisso porque nos vai afetar negativamente, então também não quero pensar no quão pequeno é tudo o resto. Quero viver!

Quando chego ao trabalho, e porque ainda não tinha atingido de alguma forma a minha vida, percebo que tinha sido diagnosticado um caso de Covid-19 no meu país. Nesse momento, sinto uma picada forte na cabeça. Sim, o vírus que só matava Chineses tinha entrado em Portugal de forma mais rápida do que um simples sonho meu. Sim, o vírus que dias antes passara por Itália, Alemanha, França, Espanha, mas que nós ainda nos “gabávamos” de ser bem mais fortes do que esses países. Não sei se era o verde da esperança da nossa bandeira que nos fazia estar tão otimistas ou se era apenas a boa dose de loucura, bem à moda do típico Português que num canto do mundo faz um barco e vai à deriva descobri-lo como fizeram tantos como os que chegaram à Índia e ao Brasil.

Estava tudo a acontecer e na altura que vou beber o meu café da manhã, percebo que no espaço onde costumava estar eu e mais uma ou duas pessoas, estavam mais de uma dúzia, pelo menos. Fiquei assustado, porque para estar tanta gente naquele sítio alguma coisa de grave tinha acontecido.

Dirijo-me a essas pessoas e percebo que o tema de conversa era um caso de Covid-19 que tinha sido identificado em Portugal. Dá-me outra picada forte na cabeça e continuo a descredibilizar a situação. No espaço de tempo que me viro para fora do círculo de pessoas, tentando respirar fundo para não me irritar com elas, um colega dirige-se a mim, perguntando se eu já sabia das notícias e, ao mesmo tempo que o faz, o meu cérebro explode e grita para mim mesmo: PAREM! ESTOU FARTO!

É por essa altura que decido isolar-me de todas as pessoas, porque já não consigo mais suportá-las. Não porque tivesse que fazer qualquer quarentena ridícula e desnecessária, simplesmente porque não tenho medo nenhum dessa gripe dos Chineses, mas porque estava farto das mesmas conversas, de um caso que, entretanto, passou a dois, da televisão, das redes sociais, dos jornais, dos amigos, da família, de tudo.

Deixei o tempo passar e, quase uma semana depois de estar em casa, começo a dar por mim obsessivo com as limpezas e com os cuidados que tinha no meu dia-a-dia. Dei por mim a falar sobre z Covid com a minha noiva. Só podia estar a ficar louco.

Eu não queria falar sobre o assunto, não queria que ele fosse importante, mas ao fim de uma semana a “levar” com o assunto 24 horas por dia, aquilo entrou de tal maneira na minha cabeça que era mais forte do que eu. É por esta altura que digo basta! Se eu não queria dar importância ao assunto, para quê falar dele? Lutei contra mim mesmo e arranjei aquilo que parecia a estratégia perfeita para fintar o coronavírus, tendo decidido o seguinte:

Por cada notícia, por cada palavra, por cada comentário, por cada vez que ouvisse ou lê-se algo sobre a Covid, eu iria para a rua contar os passarinhos. Contava um passarinho de cada vez que isso acontecesse. E no início resultou…

Ouvia uma notícia e lá ia eu para a rua. Lia o assunto num jornal e mais uma espreitadela. Um passarinho, dois passarinhos, três passarinhos, quatro passarinhos, cinco, seis, sete, 40, 50, 100, 200, 1000, 2000, 3000, até que dei por mim a passar mais tempo na rua do que em casa.

O que aconteceu posteriormente, é que concluí que essa luta estava a ser injusta. Parecia que estava tudo contra mim e quando voltava a entrar em casa era inundado com mais 40 ou 50 notícias. Pensei em desistir, mas, entretanto, decidi reformular a minha estratégia. Apontava numa folha cada vez que ouvia a palavra Covid e à noite ficava na rua a contar tantas estrelas quantas as vezes tinha apontado na folha. Depois das estrelas, passei a contar árvores, depois das árvores, carros, depois de carros, as janelas dos prédios, até que entrei numa espiral de tal forma perturbadora para mim, que já não tinha recursos ao meu alcance para lutar contra o assunto. A Covid estava realmente a tomar conta de mim! E no meu interior ouvia uma voz a dizer “Parem!”

Por essa altura, passados 15 dias, fiz o que muitos fizeram e saí da cidade para o campo. Fiz-me à estrada e desloquei-me para a terra dos meus sogros. Uma vivenda com jardim, quintal, animais, mais passarinhos, com uma vista para o céu mais ampla, ou seja, com mais recursos para lutar contra este vírus que só afetava os Chineses. Tinha tudo para ser um sítio perfeito e com recursos ilimitados para eu utilizar nas minhas contagens sempre que via algo sobre a Covid e foi o que fiz. Tive a melhor semana desde o início do mês, mas rapidamente os recursos esgotaram-se novamente. Ainda durou dois meses certos, mas os mesmos esgotaram e o processo voltou a recomeçar.

Abril de 2021

Entretanto, depois de tanta água corrida, pois este relato foi escrito no primeiro dia em que a pandemia atingiu o nosso país, algo mudou. Agora já posso contar mais vacinas que são dadas do que novos casos que aparecem, vejo negócios que estavam aparentemente acabados a renascerem das cinzas, a reinventarem-se, pese embora outros tantos tenham ido à falência após anos e anos de trabalho. O verde da esperança toma conta de nós e, desta vez, não porque achamos que o vírus não nos atinge, mas sim porque temos armas para o derrotar.

É uma luta desigual porque a Covid-19 esteve a preparar-se para uma batalha durante anos, enquanto nós tivemos meses para lidar com ele. Nada a que não estivéssemos habituados, pois a verdade é que estamos habituados a derrotar tudo e todos mesmo com metade, apenas, das armas do adversário. Desde Aljubarrota, do Europeu de Futebol, das conquistas da Telma, do Obikwelu, do Nélson e da Patrícia, da Naide, da Rosa Mota, do CR7, enfim, de tantos e tantos que com metade das armas conseguiram levantar a nossa bandeira e mostrá-la a todo o mundo. Aliás, algo em que também acho que temos mesmo de refletir, é se somos realmente mais pequenos do que os outros.

Será que temos metade das armas do adversário ou somos realmente mais fortes que eles? Seremos nós assim tão pequenos? Enfim, o que queria relembrar é que enquanto há Vida há Esperança e, como disse, já demos provas de que somos invencíveis. Houve e haverá mazelas, infortúnios sociais, de saúde, económicos, enfim… Mas existe esperança e o caminho já está a ser feito, pois se há algo em que tenho absoluta convicção, estando ela sustentada em dados empíricos de toda a nossa história, é que por cada situação menos boa, as economias e pessoas tendem a vencê-las, retornando mais fortes. Psicologicamente, socialmente, economicamente, enfim, em tudo.

Ficámos com as nossas vidas suspensas, é verdade, mas gosto de pensar que o que estivemos a fazer foi apenas a acumular energia, podendo agora encarar a vida de forma diferente, sendo mais fortes, mais unidos, mais preocupados com o próximo e com a nossa saúde, determinados em deixar uma boa marca para aqueles que virão ao mundo depois. Vamos ganhar esta batalha!