O caso das gémeas agora luso-brasileiras foi a mais recente escandaleira da vida pública portuguesa, que há longo tempo vem sendo alimentada com uma regularidade impressionante – uma história escabrosa por mês, em média a olho.
Isto poderia ter uma externalidade positiva, que seria a venda de jornais e a audiência de programas televisivos. Mas os jornais, ao menos os em papel, estão em crise, salvo se forem especializados, precisamente como o Correio da Manhã, nestas coisas. E as televisões não estão, nem é previsível que venham a estar para já, nas vascas da agonia, não precisando por isso de dar mais importância a estas coisas do que às trincas e mincas da política do dia-a-dia. A rádio, a julgar pela TSF, que esbraceja para evitar o afogamento por estes dias, também já viu tempos melhores. Sobra Sandra Felgueiras, que por milagre vai denunciando moscambilhas ou a probabilidade delas. Milagre porque num país com a presença esmagadora do Estado na economia, na saúde e na regulação sortida, e este coutada de uma casta que nele se imbricou há mais de vinte anos, com um pequeno intervalo, as denúncias são vistas por não poucos olhos oficiais e oficiosos como dissidência, e esta como má recomendação para carreiras de sucesso.
Se tivesse uma receita para a salvação dos jornais em crise hesitava em pô-la aqui, talvez tentasse deitá-la para render. E como imaginação ou engenho para sequer imaginar saída para o problema não tenho, mas sou contribuinte líquido, veria com muito maus olhos que o que me falta, e aos que se afogam por já não conseguirem nadar, fosse suprido com impostos para sustentar aqueles alegados pináculos da democracia. Até porque o fatal resultado seria, em vez de Pravdas oficiosos, Pravdas genuínos.
O caso das gémeas foi denunciado há quatro anos e logo se farejou que havia ali mão suspeita. Mas foi deixado em banho-maria – até ao início de Novembro último. Cabe aqui a pergunta do porquê desta delonga. Já há pelos menos três inquéritos, o do MP que há-de chegar a conclusões possivelmente por alturas do solstício do Verão ou aquando da vinda de D. Sebastião, o da Inspecção-Geral da Saúde e do próprio hospital (o de Santa Maria).
Peço desculpa por não levar a sério nenhum inquérito feito por quem dependa do Governo ou tenha interesse funcional no caso; e por não acreditar que o MP alguma vez chegue a uma conclusão antes de este escândalo ser substituído por outro ou por eleições ou por um terramoto nos Açores ou um atentado islamita, ou, ou.
Deste Governo, credo, e da nebulosa de serviços povoados por funcionários por si nomeados, então, nada há a esperar. E, na ausência de explicações convincentes, resta a suspeita de que era preciso um escândalo novo para ajudar a tapar a cratera aberta pela acumulação de casos, casões e casinhos afectando o PS, que quer chegar a Março em estado de virginal pureza. Nada melhor do que um enxovalhado Marcelo, que teve o topete de aceitar o pedido de demissão de Costa, uma grande vítima de sombrios complôs.
Não é que Marcelo não mereça: quem fez carreira no leva-e-traz, rodilhices avonde, e se distinguiu por uma imparável e diária torrente de banalidades, mesmo em questões sérias, traindo ao mesmo tempo a esperança, que loucos nele depositaram, de servir de algum contraponto a um governo mexicano, merecia isto e pior.
E merecia tanto mais que, agora que parece que já se está a lavar os cestos da vindima, veio dizer que o filho bem merecia umas palmadas; e fez uma declaração extraordinária, que seria o seu inconsciente auto-retrato triste, se a obsessão com a popularidade fosse vista como a inferioridade daninha que é, e não como uma faceta atraente de um feitio simpático. Como segue:
“Os portugueses estão firmes na confiança que mantêm no Presidente. Não trocam o conhecimento de 20 ou 30 anos que têm da pessoa por dois ou três meses de crise política, com muitas notícias contrárias ao Presidente’, afirmou Marcelo no Barreiro, aludindo à sondagem do Expresso publicado este fim de semana: a popularidade do Presidente caiu, mas pouco, para cerca de 65%.”
Fantástico: Que interessa esta lamentável história se os bons chefes de família (e as chefas, que são inúmeras) têm, por cima da lareira, uma selfie com o Presidente, emoldurada, em que este dá testemunho do seu imenso coração, que o faz amigo de todos os bons Portugueses?
Ou talvez não. Que com tudo isto se vai compondo o quadro, de que os reformados no meu café dão testemunho, da inabalável certeza de que todos os políticos dão um jeito aos amigos e que quase todos (mas este não, que é um gajo porreiro) o fazem a troco de benesses presentes ou futuras. A magistratura de influência, que a Presidência é, superintendeu sempre alegremente na pêessização do país; e pode-se dizer que com isto fecha com chave de ouro.
Há quem reaja, fora do dever de ofício da Oposição? Pouca gente. E até a Igreja, a julgar pelas declarações do interessante bispo Ornelas, veio pôr uma cereja marcelística em cima deste bolo: “Cunhas que salvam crianças não fazem mal a ninguém.”
No mesmo dia em que isto li, escrevi numa rede:
Era bom que os lugares de topo estivessem reservados a pessoas sensatas, equilibradas e inteligentes. Poderíamos julgar que sim porque, se são de topo, há poucos para candidatos muitos, donde a concorrência é grande. Mas não: a experiência diz-nos que o asneirol acompanha muito também as pessoas que são, como se diz, de representação. E uma notabilidade a aliviar-se de tolices tem a vantagem de a gente se divertir. Excepto se o assunto for sério, como é aqui, porquanto: o medicamento custou 4 milhões de Euros que nasceram numa árvore regada com o suor dos contribuintes, os quais não têm a obrigação de ajudarem filhos de cidadãos estrangeiros, naturalizados às pressas para o efeito; é intolerável que a diligência, os cuidados, o ultrapassar do ronceirismo tradicional da Administração, mormente do SNS, se tenham visto de repente transmutados numa impressionante eficácia a benefício de cunhas de quem não deveria ter o poder, que é inadmissível num Estado de Direito, de tratar desigualmente o que é igual; não faltam cidadãos, e destes muitas crianças, que têm doenças às vezes da mesma gravidade, e que esperam e desesperam pela consulta, o tratamento, o medicamento, a prótese, o meio auxiliar da vida de diminuído, que nunca mais vem. A investigação é necessária porque o cidadão tem o direito de saber o que passou – o dinheiro de todos não é pertença de uma casta; e, garantidos os direitos de defesa, alguma sanção, nem que seja apenas a condenação pela opinião pública, tem de haver. Ornelas não entende nada disto porque não as pensa e entende que dá testemunho de grande virtude ao achar, porque mais não cabe no seu apertado bestunto, que há crianças de primeira e de segunda. Mas não há: nem aos olhos do Deus que nisto serviu mal nem aos das leis atropeladas.
O Chega, porém, não cresce por acaso, cavalga a indignação; e a descrença na reformabilidade do país é a maior amiga da abstenção. Ambas as coisas subprodutos, em parte, do PS. Uma herança que teve aliado no sítio onde menos deveria estar.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.