Nos últimos anos, os campus norte-americanos têm sido palco de um debate aceso sobre os limites da liberdade de expressão. Há vários meses, uma das crónicas que aqui escrevi descrevia um caso, em tudo típico, passado na escola de Direito da Universidade de Stanford, na Califórnia. Nesse caso, como em inúmeros outros casos ocorridos nos últimos anos, tínhamos um orador controverso, geralmente a proferir um discurso conotado com a ala direita ou contra as causas identitárias ou progressistas, que era acusado de estar a espalhar e a utilizar um “discurso de ódio”, discriminatório e, por isso, violento contra alguma minoria ou grupo social. Em resposta, grupos de direita, com os seus próprios objectivos políticos, reclamavam pelo direito à liberdade de expressão, que, em sua opinião, deve ser inviolável. Grupos de esquerda, muitas vezes apelidados de woke, retorquiam que a liberdade de expressão deve ser limitada em nome de outros valores, como a igualdade e justiça social ou a segurança dos indivíduos (o “discurso de ódio” é, neste contexto, muitas vezes retratado como pondo em causa a segurança de determinadas pessoas).

Desde 7 de Outubro de 2023, mas principalmente nas últimas semanas, os papéis inverteram-se de forma curiosa. Na sequência de protestos cada vez mais intensos e difusos em defesa da causa palestiniana nos campus das universidades norte-americanas, e da posição da administração de algumas universidades de reagir tentando dissipar os protestantes ou mesmo chamando a polícia, vemos os mesmos grupos defendendo, cada um, a posição contrária aquela que haviam defendido anteriormente. De um lado, os grupos mais ao centro e à direita, que até há uns tempos defendiam que a liberdade de expressão estava sob ataque nas universidades, defendem agora ser necessário acabar com os protestos de esquerdistas radicais, em nome da segurança dos campus universitários e das pessoas de identidade judaica. Do outro lado, aqueles que até há poucos meses queriam cancelar discurso por ser radical (de direita) e constituir discurso de ódio (contra algumas minorias), querem agora liberdade de expressão absoluta e não se importam de cantar pelo fim do Estado de Israel ou de ignorar que do outro lado da guerra está o Hamas, uma organização terrorista sem qualquer apreço pelos direitos humanos. Os que queriam cancelar desejam agora não ser cancelados. Os que se queixavam da cultura de cancelamento desejam agora cancelar protestos desagradáveis e que consideram moralmente aberrantes. Onde estão os defensores da liberdade de expressão? É difícil encontrá-los.

Os protestos na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, ao longo da última semana, têm sido particularmente controversos e têm espoletado uma série de protestos semelhantes em outras universidades. Como em várias universidades, grupos de alunos (que são uma minoria dos estudantes, é sempre importante relembrar) montaram acampamentos com tendas, muitas vezes que permanecem nos relvados dos campus durante meses, onde se grita pela justiça para os Palestinianos, pelo divestment de investimentos em Israel, e se entoam cânticos pela existência de um Estado do rio Jordão até ao mar. A grande maioria dos protestantes são pacíficos e não violentos e, por muito que não gostemos das suas ideias, creio que têm o direito de protestar.

É evidentemente contra as regras de funcionamento de uma escola montar acampamentos permanentes (com tendas, durante meses a fio) no meio dos jardins das universidades, de forma não autorizada. No entanto, desde que feitos de forma pacífica e não-violenta, creio ser muito difícil do ponto de vista ético que quem quer defender a liberdade de expressão queira também cancelá-los a ponto de chamar a polícia. Se os protestos forem pacíficos e não-violentos e não constituírem ameaças à vida das outras pessoas ou ao funcionamento geral das universidades, creio não ser razoável chamar a polícia, como fez a presidente da Universidade de Columbia a semana passada. A partir do momento em que se parte para altercações físicas, ocupação de edifícios da universidade, ou ameaças graves e concretas à segurança de indivíduos ou grupos, passa a ser legítimo querer cancelar os protestos. Foi isso que se passou esta semana em Columbia, com a ocupação de um edifício da universidade, onde os grupos em protesto se barricaram e tiveram de ser removidos pela polícia. A universidade cancelou aulas presenciais durante um período, até as coisas se acalmarem. Os protestos podem tornar-se um fardo politicamente nocivo para Joe Biden, que é percepcionado pela extrema-esquerda como estando a adoptar uma posição pró-ordem e contra os protestos, enquanto a direita o tentar colar a esses mesmos protestos. Lembremo-nos que os protestos universitários do ano 1968 e as divisões internas no Partido Democrata acabaram por custar a Casa Branca ao partido (para Richard Nixon).

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Há vários aspectos interessantes em tudo isto. Primeiro, a ocupação simbólica do Hamilton Hall, um edifício da Universidade de Columbia, que foi ocupado durante os protestos de 1968 contra a guerra do Vietname. Estes são os maiores protestos nos campus universitários norte-americanos desde essa época tumultuosa. Naturalmente, há uma tentativa de colagem simbólica da causa palestiniana aos movimentos de contra-cultura e de direitos civis dos anos 60 que, hoje, são percecionadas por muitos como tendo vencido e moldado a cultura norte-americana do último meio século. Este tipo de protestos vai muito para além da causa palestiniana. Quem predomina nos campus universitários ganha e perde o discurso cultural doméstico. Cada lado tenta mostrar o outro como extremista e, acima de tudo, persuadir a opinião pública de que a ética está do seu lado. E, através de uma causa, tenta-se mover o eleitorado para mais próximo da sua visão do mundo.

A batalha cultural separa-se da batalha no terreno. Mas, nessa separação, criam-se muitas vezes caricaturas simplistas das posições e os batalhadores culturais acabam por abraçar uma facção que, se postos no terreno, não gostariam nada de abraçar. Como nos lembra o cronista Edward Luce, quantos protestantes contra a guerra do Vietname abraçaram inadvertidamente o regime do norte do Vietname e, principalmente, o maoismo e a sua revolução cultural, também ele aberrante? É preciso abraçar uma aberração para lutar contra outra? Estamos nós reduzidos a escolher o lado menos mau? Em política internacional, e na guerra, dá-se frequentemente o caso de ambos os lados estarem profundamente errados. E o exercício de identificar quem é “menos mau” é muito mais complexo do que possam pensar.

Um segundo ponto interessante, que aliás confirma que estes protestos estão, acima de tudo, centrados em guerras culturais mais latas, prende-se com o facto de, segundo vários jornalistas e responsáveis políticos e universitários, incluindo o mayor de Nova Iorque, grande parte dos elementos mais radicais e violentos dos protestantes nestes acampamentos não serem estudantes daquelas universidades. Os protestos, que se realizam num espaço da Universidade mas aberto ao público em cidades enormes como Nova Iorque, Atlanta, ou Los Angeles, são frequentemente infiltrados por indivíduos de fora, muito mais radicais que os estudantes, que querem causar agitação e que usam os protestos dos estudantes para gerar atenção mediática para as suas causas.

Terceiro, há a questão do discurso propriamente dito. Em particular neste tema, há frequentemente debates sobre a utilização da palavra genocídio e sobre o que constitui antissemitismo. Há quem argumente que cânticos a reclamar por “um Estado [Palestiniano] do rio até ao mar” é, de facto, uma proclamação pela aniquilação do Estado de Israel e de todas as pessoas que lá vivem. Naturalmente, quem argumenta que só deve existir um estado Palestiniano naquela zona tem de responder sobre como irá garantir a sobrevivência de milhões de indivíduos judeus nesse futuro Estado, já que muitas das elites palestinianas são extremistas religiosos que não querem uma democracia com respeito pelos direitos humanos. É também questionável a agressividade e gravidade de algumas acusações contra Israel quando comparadas com a indiferença perante atrocidades muito maiores por outros regimes pelo mundo fora. Percebo, por isso, que alguns Israelitas e Judeus sintam algum antissemitismo. Mas numa guerra de décadas entre Estados, quando um dos Estados é um Estado judaico, qualquer crítica a esse Estado poderá sempre ser denominada de antissemita. Creio que precisamos de ser rigorosos e separar ataques ao povo judeu como um todo e às acções de um governo de um país em guerra. Há também quem argumente que aquilo que Israel está a fazer na Palestina, depois de uma guerra que já matou dezenas de milhares de palestinianos, constitui um genocídio. O Tribunal Penal Internacional considerou que, embora haja crimes de guerra, não há indícios de genocídio.

As acusações de genocídio, ou de intenções de genocídio, de ambas as partes, são naturalmente mais um jogo político para tentar ganhar a guerra da opinião pública. Como todos sabem que a opinião pública considera o genocídio o pior de todos os crimes, muitos tentam mobilizar o conceito para ganhar os corações e opiniões das populações. Os cânticos e slogans – uma vez que felizmente não têm hipótese concreta de vir a ser concretizados – podem ser cantados, por mais aberrantes que sejam ou que discordemos deles. É esse o significado da liberdade de expressão. Liberdade para discurso que alguém considerará ofensivo e violento, mas que não se materializa em ameaça concreta a ninguém. Todos têm de conseguir viver com isso e ganhar “thick skin”, sabendo que a luta discursiva é diferente da guerra no terreno.

Todos estes protestos à volta da causa palestiniana não são sobre a Palestina em concreto. A causa palestiniana tornou-se, antes de mais, um símbolo cultural, instrumentalizado para inúmeros fins e guerras políticas locais e utilizado como “marcador” de pertença a determinados grupos. O mesmo se passa com a causa israelita, em muitas situações, bem como de muitos dos grupos e actores que se posicionam contra a causa palestiniana. No meio de tudo isto, sem que realmente ninguém queira saber deles, está a heterogeneidade e diversidade interna da sociedade israelita, as várias visões que também se digladiam entre si para tomar o poder da sociedade palestiniana, e uma guerra entre Estados demasiado complexa para ser resolvida por quem quer ler tudo de forma binária e identitária. O discurso sobre o assunto foi tomado por posições extremistas.

No fundo, creio ser este o cerne da questão: estes protestos não são sobre o conflito israelo-palestiniano, mas sim sobre política local norte-americana e ocidental. São a exportação para a política externa – são uma projeção geopolítica – das tendências a que infelizmente assistimos nos últimos anos: a crescente radicalização do discurso e das ações em torno de uma concepção identitária e grupal do ser humano e da política. A simplificação excessiva e agressiva do discurso em amigos e inimigos, de forma absolutamente binária e adolescente, não ajuda ao progresso de ninguém.