1 Já se sabe, é inescapável: Francisco Sá Carneiro será lembrado e homenageado este mês de Dezembro em todos os tons, e sabe Deus até por aqueles que ele detestaria que o fizessem mas a natureza humana sendo o que é, passo adiante. (E não era agora que ia haver uma estreia absoluta de homenageantes da 25ª hora: as lágrimas de crocodilo têm a idade do mundo e a prática da batota também).

Sucede que para lá de efemérides que por definição se circunscrevem a um momento e no dia seguinte se diluem em nova efeméride, recordar Sá Carneiro, interessa. Politicamente interessa mesmo muito. O que ele representou ontem e simboliza hoje está muito para além de qualquer data por emotiva ou sentida que seja. Mas o então líder do PSD só interessa se se perceber… porque interessa. Isto é, que o seu exemplo nos é acessível, que o que fez politicamente é exequível, que o seu legado é absolutamente repetível.

Em resumo: há que herdá-lo. Só isso vale a pena. Substituindo a tentação tão portuguesmente sebastianista de o mitificar, pelo compromisso de rentabilizar a sua herança. Os tempos estão feios e as vontades perderam qualidade? Paciência. Há, dentro e fora de portas o espectro da deliquescência a consumir-nos? Há. O combate é desigual? É desigualíssimo. O que distingue porém um lutador consequente e patriota é lutar sem cansaço segundo cada circunstancia e com os instrumentos de que dispõe à passagem de cada tormentoso cabo. Foi o que Sá Carneiro fez. Primeiro com a improvável Ala Liberal onde expôs a agonia do regime e adubou o chão do futuro PPD; depois com o próprio PPD, um partido que viria a ser um cabo dos trabalhos; depois com a dificultosa AD e finalmente com o entendimento de que governar era simplesmente servir o país. (“primeiro o país, depois a democracia, depois o partido”)

Sá Carneiro agiu sempre cercado. Pelos outros e pelos seus, que quantas vezes não se encarregaram eles mesmos da montagem do cerco — e do circo. Um agregado familiar transversal e singular onde, desde o primeiro minuto da sua existência até ao último da vida do próprio Sá Carneiro abundaram, como em nenhuma outra formação partidária, querelas, amores, ódios, abandonos, intriga, discordâncias, fracturas, rupturas, cisões. Um solitário caminho de pedras. Em cada etapa, Sá Carneiro deixava cair o joio e utilizava o trigo para fermentar a mudança porque sempre se bateu. Na Ala liberal, no PSD, na AD, no Governo. O modelo foi sempre o mesmo: a substituição do então estado das coisas pela plena democracia. Desde os anos sessenta do século passado até 1980, nunca cedeu a mudá-lo. Nunca desistiu, nunca contemporizou, nunca se bateu por ser popular — era-o nas suas bases e nunca temeu estar sozinho na travessia. Politicamente teve a coragem de protagonizar como poucos o “mais vale só que mal acompanhado”. No auge da solidão política, tinha-se a si mesmo, enroupado na sua convicção. Horas depois de (imperturbavelmente) ter visto em 1978 a saída de dezenas de deputados da sua bancada parlamentar, disse a alguém (que está vivo e ouviu da sua boca o extraordinário desabafo) que “nunca estivera tão só mas nunca sentira tanto que tinha razão”.

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2 Dir-me-ão que me repito e que isto é conhecido. Será. Mas ou se sabe porque na politica se admira alguém ou não. Ou se faz politicamente caso de uma postura, uma conduta e das razões que a justificam, ou não vale a pena homenagens. Ou se alcança porque é que nos grandes combates vale mais a pena por vezes ser impopular que acarinhado ou mais convicto que estabelecido, ou o combate se torna estéril e inútil.

Admirar Francisco Sá Carneiro não é de borla. Tem o preço da responsabilidade. E a exigência moral, cívica e política da rentabilização da sua herança.

3 No mundos dos vivos a coisa está pior. António Costa publicitou quanto pôde a sua resistência – que mais parecia um sobranceiríssimo nojo – a negociar o Orçamento de Estado com o PSD. Com a geringonça já esgotada, restava a salvífica autorização para uma prova de vida do PCP aos seus camaradas: uma bombada de ilusão através de discursos confrangedores sobre felicidades que nunca existiram. De modo que agora, com um país praticamente trancado dentro de casa e com a policia em cima se nos destrancarmos, teremos a excepção inimaginável de uma farta reunião partidária: centenas de carros na rua, aglomerados de gente, movimento, perigo de contágios numa sala com 600 pessoas la dentro, num pavilhão em Loures. Assistiremos impotentes e envergonhado á esmola indecentemente concedida aos comunistas, a troco da sua (caríssima) viabilização do Orçamento. Umas contas de resto ainda não estreadas mas já esfrangalhadas entre as exigências da pandemia, a prepotência das esquerdas radicais e o oportunismo político. Haverá pior? Pode haver mas futuro é que não há. E pior herança do que deve se a política também não.

4 Ouvimos falar da vacina para Covid a toda hora e momento, dia e noite. Prometem-nos tudo, datas, acesso, marcas; falam-nos em quantidades e números, quase nos prometem o céu com a garantia da cura. Pois bem: face à desorganização e ao caos que ocorrem a nível nacional com a trivial vacina da gripe, como querem que acreditemos nas generosas encomendas que nos asseguram sem pestanejar que já fizeram, estão a fazer, irão fazer, vão chegar?