Moby Dick é uma das mais importantes narrativas modernas. O título enfatiza a baleia branca e poderia até parecer que o seu verdadeiro ponto focal – Ahab, o capitão do Pequod, obcecado por vingança – se encontra na penumbra quando, na verdade, a obra de Melville é uma meditação sobre o perdão impossível, sobre a incapacidade de perdoar. O que nos poderia levar a concluir que um corpo é vulnerável não apenas por poder ferir e ser ferido, mas também por não conseguir esquecer a ferida que, de tão intensa, exige ser vingada, encontrar o responsável para marcá-lo na sua pele, destruí-lo e exterminá-lo. Mas será realmente assim.
A sombra do capitão Ahab é muito longa e todos nós já a sentimos nalgum momento: o facto de, atravessando a última noite do ano, à terna recordação de 365 dias que nos foram oferecidos, preferirmos petulantes resoluções de Ano Novo, melancolicamente cuspidas contra o rosto do tempo, confirma que cada um de nós persegue, na sua vida, a sua própria Moby Dick.
Curiosamente, a filosofia concentrou-se muito mais vezes no perdão do que no seu reverso, o seu malévolo e terrível duplo – a vingança. As cicatrizes são por vezes tão profundas que apenas o perdão poderia evitar um novo sangramento. No entanto, o perdão nem sempre consegue fazer com que as cicatrizes permaneçam fechadas. Por vezes, elas voltam a abrir, supuram e lá surge a vingança com o seu infernal rosto. É justamente porque é vulnerável que um corpo tem de perdoar. Talvez até precise de fazê-lo para desfazer aquilo que fez, para desfazer tudo quanto as suas palavras e acções provocaram.
O perdão, contudo, não é um dever, mas um dom e, como tal, é oferecido e pedido em troca de coisa nenhuma. Oferecemo-lo e pedimo-lo precisamente porque sabemos que nada, absolutamente nada, poderá compensar o mal, a ofensa. Sabemos que as cicatrizes daquela ferida jamais desaparecerão e, não obstante tudo quanto perdoamos, queremos perdoar, e apesar de tudo por que pedimos perdão, queremos que nos perdoem. Porquê?
Talvez não exista uma resposta. Talvez o façamos para podermos continuar a viver. Talvez perdoemos por nós mesmos e não pelo outro. Por vezes pensamos que não, que não há razão para perdoar, que o perdão não tem razão de ser, que é uma contradição. Pode até dizer-se que é um absurdo.
Como destacou Jacques Derrida, é esse precisamente o grande paradoxo do perdão: faz sentido porque existe qualquer coisa de imperdoável, porque apenas um acto imperdoável pode ser objeto de perdão. Se se perdoa algo que é perdoável, o perdão desaparece, dilui-se como açúcar em água quente. O paradoxo do perdão é este: o único espaço onde ele pode surgir é precisamente aquele onde o perdão é absurdo, onde ele não faz sentido absolutamente nenhum.
Há um momento absolutamente único, fundamental e irrepetível – aquele em que uma criança descobre a sua própria sombra: descobre um outro eu, alguém que em segredo para sempre a acompanhará. Esse alguém habitará os seus pensamentos e os seus desejos mais íntimos, é o seu oculto duplo, a sua dimensão proscrita. Em Peter Pan, o romance de J. M. Barrie, o rapaz voador regressa a Londres em busca da sombra que tinha perdido, porque é ela que o vincula à ilha de onde vem; e, por intermédio dela, à infância, com todas as suas fantasias e loucuras. Nessa sombra reside a sua vitalidade, mas também tudo quanto de caótico e destrutivo existe. Freud, Nietzsche e Jung exploraram imenso esse eterno conflito por apaziguar entre sombra e razão, e concluíram que jamais seria possível um desenvolvimento completo da personalidade sem uma harmonização entre ambas.
Adelbert von Chamisso escreveu no início do século XIX A Maravilhosa História de Peter Schlemihl. Nela, um homem, para ficar rico, vende ao medo uma parte da sua humanidade: a sua sombra. Poderia ser uma alegoria destes nossos tempos, em que também por medo (medo do que somos, do nosso verdadeiro ser, das suas eternas questões e do seu poder criativo) evitamos tudo quanto nos perturba ou inquieta, para nos refugiarmos no cálido ninho das nossas comodidades. O romance de Chamisso conheceu um sucesso extraordinário e muitos outros autores recriaram depois dele essa estranha história. Hoffman transformou a sombra na imagem refletida num espelho, e Théophile Gautier conta a história de um jovem romântico que enlouquece quando perde essa imagem. Em A Sombra, de H. C. Andersen, e O Pescador e a sua Alma, de Oscar Wilde, são as sombras que acabam por escravizar e transformar os seus atribulados donos em reflexos. Também Drácula fala dessa primazia da sombra sobre a razão, pois, se é perigoso alguém perder a sua sombra, não menos perigoso é ela adquirir um tal poder sobre ele que acaba por sujeitá-lo à obscura lei dos seus caprichos. A sombra concretiza, em todas estas histórias, a parte primitiva e instintiva do homem. É o seu duplo negativo, mas também a fonte de vitalidade e, de certa forma, da sua saúde intelectual. É ela que nos ensina a tolerar ambiguidades e nos afasta dos perigos que acossam o homem integrado: a rigidez de pensamento, o dogmatismo, o fundamentalismo, os preconceitos ou a banalidade.
Yasunari Kawabata tem um conto chamado A Mãe que Sabia Ler. Os seus protagonistas são uma mãe e um filho. O filho é louco e passa os seus dias trancado num quarto rodeado de resmas e resmas de papel, escrevendo incansavelmente. Mas apenas imagina que o faz, porque as páginas continuam sempre em branco. Quando a sua mãe chega ao final do dia, ele pede-lhe que leia o que escreveu, e ela, comovida com a alienação do filho, começa a inventar. Conta-lhe então as memórias da sua infância, as histórias da sua juventude, levando o filho a pensar ter sido ele a escrevê-las. A mãe recorda coisas que havia esquecido, e o seu amor fá-lo pensar que é ele, o seu filho, quem a faz dizê-las, e deste modo as almas de ambos se fundem numa só. Mas não será o amor essa doce batalha entre nós e as nossas próprias sombras?
Octavio Paz gostava de recordar uma visita que fizera a uma pequena escola de uma aldeia asturiana. As crianças, que andariam pelos seis anos, tinham lido uma história chamada O Pacto da Floresta, na qual uma loba, depois de ser salva por alguns coelhos, lhes promete que nunca mais, naquela floresta, os lobos os atacarão. A professora, depois de explicar pacientemente às crianças o significado da palavra pacto, pediu-lhes que fizessem um desenho explicando com quem ou com quê fariam um pacto. As respostas foram, no geral, tão previsíveis quanto costumam ser as de crianças que desejam obter a aprovação do adulto: uma criança desenhou e descreveu um pacto para que os animais não tivessem de morrer; uma outra, um pacto com a natureza que os homens estavam a destruir; outra ainda, um pacto para que as crianças pobres pudessem ir à escola. Mas havia, naquele grupo, uma menina que nascera sem os dedos de uma das mãos e cujo desenho respondia a uma lógica muito mais pessoal. No seu desenho, podiam ver-se as duas mãos, a boa e a imperfeita, em ambos os lados de um caderno aberto. Por cima, ela escrevera: “O pacto que as minhas duas mãos fizeram”. E no caderno, entre as mãos, podia-se ler: “Amo-te”.
Duas mãozitas que fazem um pacto: uma boa – com os seus cinco dedos – e outra estranha – a sua sombra. Talvez seja isso o amor e o perdão: tropeçarmos em alguém que desde sempre transporta em si algo que apenas nós podemos escutar.
Afinal, caro Ahab, um corpo vulnerável (de vulnus, ferida) não pode existir, não pode reinventar-se, senão na compaixão e no consolo, na contingência, na vergonha e no perdão.