Em tempos idos, que não era melhores do que os actuais – nenhum tempo do passado é melhor ou pior, é apenas diferente -, ouvíamos ou líamos notícias para sermos informados.

E acreditávamos nelas. Por vezes, à leitura de um texto demasiado alinhado, favorável às teses de alguém, força política, personalidade, acusado ou acusador, podíamos suspeitar tratar-se de um frete feito a essa força ou pessoa, mas era fácil de interpretar.

Nesse tempo falávamos de fontes, de gestão dos fluxos de comunicação, de “gate keepers”, e confiávamos nas notícias. A maior parte, como hoje sucede, víamo-las na televisão, ouvíamo-las na rádio – em geral no caminho para o emprego –, nos jornais e revistas da nossa preferência.

Hoje a informação parece ter enlouquecido. Às fontes tradicionais, ao labor honesto e por vezes frustrante dos jornalistas, substituiu-se o frenesim das redes sociais, em que cada um pode ser uma fonte; e estranhas centrais de desinformação fabricam inverdades (neolíngua para mentiras).

Vivemos a era da pós-verdade. Há dois anos, os dicionários Oxford elegeram-na “palavra do ano”. A expressão não é nova, sendo o seu uso pela primeira vez atribuído ao americano Steve Tesich, em 1992. Pós-verdade significa, numa frase, o uso de argumentos emocionais, de apelo às crenças e aos medos individuais, para a obtenção de ganhos (políticos, em geral). O dicionário Oxford define-a como “relacionando ou denotando circunstâncias em que os factos objetivos são menos capazes de moldar a opinião pública do que o apelo às emoções e crenças pessoais”. Daí não adviria problema especial se esses argumentos não falseassem a verdade e os factos. O que fazem.

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A pós-verdade é a era das chamadas notícias falsas – as “fake news” tomaram conta das redes sociais, com o Facebook à cabeça. De acordo com o site “statista”, entre Agosto de 2016 e a data das eleições americanas, o FB partilhou, comentou ou reagiu 8,7 milhões de vezes a notícias falsas, e apenas 7,3 milhões a verdadeiras. E essas notícias viajam à velocidade da Internet: uma informação falsa pode dar a volta ao Mundo instantaneamente.

Mas as notícias falsas não ficam confinadas às redes sociais e à Internet, são cada vez mais repercutidas pelos órgãos de comunicação social “mainstream”, os que todos lemos, vemos ou ouvimos diariamente. Dá menos trabalho e, sobretudo, permite estar à frente da concorrência (que faz o mesmo). Há excepções, mas são cada vez menos.

Por outro lado, as pessoas tendem a basear-se nas crenças e juízos moldados cultural ou socialmente ao longo das suas vidas, e a não prescindir deles. É difícil separar o trigo do joio, a verdade da falsidade. Sabendo disso, os criadores das notícias falsas, bem como robots alimentados a “machine learning” (através dos algoritmos de aprendizagem), moldam as suas histórias a essas crenças e juízos. Haverá notícia mais desejável do que a que confirma ou justifica aquilo em que já acredito? Haverá notícia mais bela e desejável? E rejeitar, à contrário, todas as notícias e factos, sobretudo estes, que contrariam as nossas convicções? Como escreveu uma jornalista brasileira, já não se trata de pós-verdade, mas de “auto-verdade”. Acreditamos naquilo em que escolhemos acreditar. Quando em plena campanha Trump foi noticiado que o Papa Francisco lhe tinha declarado o seu apoio, a notícia, naturalmente falsa, deu a volta ao mundo em poucos dias, chegando a milhões. Os fãs de Trump não mais quiseram voltar a ouvir o contrário.

E em Portugal? Os portugueses indignaram-se com um vídeo sobre a agressão a um sem-abrigo e foram milhares as reacções de ódio nas redes sociais? Fake news. Mas o ódio racial vai crescendo, insidioso, latente, à espreita. A divulgação de uma fotografia de alguém que seria a (futura) nova PGR em casa de Sócrates levou milhares a indignar-se. Mesmo sem ter visto, apenas por ouvir dizer. Fake news. Mas a suspeita ficou. Em Portugal, 61% dos portugueses diz identificar notícias falsas pelo menos uma vez por semana. Não é mau mas é pouco, considerando os milhares que circulam. Dizem-nos que vários sites de “fake news” estão alojados no Canadá, com notícias inventadas sobre a política portuguesa, as quais são multiplicadas por vários grupos no FB. O caso do relógio da Catarina Martins é um exemplo – e li comentários indignados nas redes sociais.

No mundo pós-verdade, ou auto-verdade, a mentira prolifera: na falsificação de resultados eleitorais, na manipulação dos factos, na criação de ambientes propícios a certas propostas políticas. O populismo alimenta-se dela e cresce graças a ela, imune à verdade. Um apoiante incondicional de um chefe populista pura e simplesmente não escuta, não vê, não liga a qualquer notícia que descredibilize o seu amado líder; para ele, são todas fake news.

O problema da pós-verdade é que não há remédio milagroso. O que a distingue, ou à auto-verdade, como lhe chamei, é a resposta pública que o uso das novas tecnologias e das redes sociais promove e potencia: resulta a polarização da opinião, o sentimento de clã, a deriva auto-identitária. A agressividade (bastar visitar certos blogs ou caixas de comentários). O resultado  ameaça o nosso modo de vida, a democracia como a conhecemos, cria culpados instantâneos e torna-nos totalmente vulneráveis perante um espaço público exacerbado e perigoso.

E por isso não podemos resignar-nos. Temos de reagir. A começar pelo reforço da precaução em relação às notícias, mesmo as veiculadas por respeitáveis meios de comunicação. Cada um de nós pode ser um zeloso vigilante contra a mentira, sobretudo a que medra e prospera na Internet.

Só assim a democracia e a decência poderão vencer. Afinal, vistas bem as coisas, uma fake news mais não é do que uma mentira com esteroides.