Os leitores perdoarão este uso algo forçado da relação entre «as palavras e as coisas», acerca da qual Michel Foucault, o filósofo entretanto esquecido, escreveu um livro muito na moda há mais de 50 anos no qual explicava as relações menos óbvias entre «as palavras e as coisas», que efectivamente o positivismo anglo-americano interpretava como tal coisa, tal palavra e vice-versa… Foucault mostrou, contudo, que tal relação era bem mais complexa do que parecia: as palavras fixavam as coisas mas, ao mesmo tempo, o seu significado evoluía em função do próprio evoluir das palavras perante os sentidos que as pessoas iam, entretanto, atribuindo a coisas cada vez mais diferentes…

Desde então, o mundo deu as voltas que se sabe. Contudo, no último quinquénio, a complexidade da relação entre as palavras e as coisas, bem como a mútua interacção entre umas e outras, voltaram ao de cima, mercê da crescente e pantanosa obscuridade do mundo das ideologias que hoje prevalecem sob formas tanto mais primitivas, quanto as culturas periféricas menos entendem os conteúdos e mutações da relação palavra-coisa-palavra-coisa nos centros internacionais da especulação ideológica!

O resultado dessas desequilibradas interacções entre o centro e a periferia mundiais foi desencadear um ruído ensurdecedor em torno do binómio, em breve promovido a trinómio, entre sexo, raça e poder… Tudo palavras cujo significado muda de dia para dia ao mesmo tempo que as coisas às quais as ditas palavras se presume corresponderem… É, pois, altura de recuperar o sentido do ditado português, segundo o qual, «palavras leva-as o vento»… Esperar-se-ia que assim fosse, mas não é… Pertencendo este regime de trocas permanentes às pessoas mais habilitadas para lidar com a complexa e ambígua relação entre palavras e coisas, a maioria das pessoas atrasa-se na permanente troca entre umas e outras: ora presumem a primazia da primeira sobre a segunda, ora descobrem o contrário!

A mim parece-me óbvio, que, tendo as coisas um peso difícil de mudar do pé para a mão, é menos realista mas mais tentador e fácil para os decisores de serviço agirem sobre as palavras – mais maleáveis e sedutoras ao ouvido do que coisas baças –, de forma a mudar os seus anteriores significados e/ou a sua aplicação a coisas diferentes, muitas delas em permanente mutação relativamente aos seus significados anteriores. No limite, trata-se de começar por mudar as palavras a fim de mudar as coisas no sentido desejado pelos donos ocasionais do poder. Em suma, mudar o vocabulário, a fim de quem detém provisoriamente o poder eleitoral mudar as coisas… de forma a esta última mudança assegurar, porventura, a manutenção dos manipuladores do vocabulário no poder!

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Foi isto que denunciei na semana passada, a respeito de uma tentativa estatal de manipular a linguagem administrativa no sentido ideológico desejado pelo actual governo, em suma, um passo na direcção daquilo que Orwell (1948) designou outrora como a «novilíngua» soviética, homóloga à linguagem nazi! À nossa pequena escala, trata-se de uma tentativa do Conselho de Concertação Social para camuflar as diferenças objectivas entre sexos, que continuam a prevalecer do ponto de vista laboral, atrás da «novilíngua» que tem vindo a impor-se nos meios de comunicação social.

Quem duvide deste processo de pretensa des-sexualização linguística, cuja velocidade se junta à da despenalização da eutanásia mediante uma votação restrita no Parlamento mas que seria derrotada em referendo, basta que se dê ao trabalho de ler o brado entusiástico de uma conhecida deputada do PS acerca da mudança linguística em curso, bem como a violência ideológica com que a mudança está a ser promovida com a bênção do PS e consócios!

Além de uma permanente violência simbólica, sempre inquietante, por parte das «palavras» sobre as «coisas» e destas sobre aquelas, esta descarada campanha do PS, que tanto agrada ao BE, favorece deliberadamente uma «novilíngua» sem controlo nem respeito pelo conjunto de uma sociedade antiga e complexa como a nossa. Conduzida no segredo dos gabinetes e no palco de exibição parlamentar, tal campanha não deixará de ferir os sentimentos, como se dizia antigamente, de uma parte muito substancial do eleitorado.

Lamentavelmente, o brutal processo de submissão da população –primeiro com o isco de empregos e ordenados de baixo custo, como no turismo, depois com o terror da pandemia e das perdas de toda a natureza que esta acarreta – desmantelou qualquer oposição eficaz. Com efeito, à parte os «micropartidos» surgidos nas últimas eleições, a velha oposição conservadora perdeu não só cadeiras no Parlamento como deixou de apresentar a expectável face de uma oposição compacta e determinada quanto a objectivos que essa oposição efectivamente já não tem ou já não é capaz de defender… Sem verdadeiro governo nem começo de oposição, resta o poder pelo poder e um inquietante palavreado ideológico no lugar das coisas concretas!