Com o habitual atraso deste confim do sudoeste europeu, aí está o inevitável aparecimento da «novilíngua»! Orwell é que tinha razão no seu «1984», escrito no ano inverso de ’48, na véspera da «guerra fria» que se iniciaria em ’49 com a criação da NATO, integrando habilmente a ditadura portuguesa… mas não a espanhola, poucos anos após a aliança constituída pelas duas grandes democracias anglo-saxónicas com a Rússia soviética a fim de liquidar de vez a Alemanha hitleriana!

De então para cá, com o arrastado final do «Estado Novo» e do seu sucedâneo marcelista, acabada a guerra colonial assim como os golpes e contra-golpes militares que lhe sucederam, os governos que vieram a tomar conta de Portugal em 1976 não têm feito outra coisa que não seja pintar a fachada caseira com sucessivas tintas de civilização. Em vez disso, deviam ter consolidado o regime representativo e crescer economicamente, que são as duas coisas que todos queremos mas não conseguimos extrair dos partidos políticos que se apoderaram dos mecanismos eleitorais através de uma constituição que nunca foi submetida a referendo, como tão pouco o têm sido os tratados europeus!

Após três graves crises financeiras, nem a recuperação promovida pelo governo Passos Coelho e pelos credores internacionais conseguiu tirar o país do atoleiro partidário estatista, corporativo e clientelar em que temos vivido desde final de 2015. Em tempos como os actuais, mais de cinco anos é muito tempo, sobretudo quando o país soçobrou sem plano de defesa na consabida pandemia. A ânsia do PS em sobreviver politicamente levou, como se sabe, à ruptura do pacto entre os três partidos democráticos segundo o qual quem tinha mais votos governava, mesmo sem a maioria dos deputados…

Os resultados estão à vista. Tanto ou mais do que o preço político e económico pago pelo PS aos seus novos aliados tem sido o preço sócio-cultural pago às ideologias disruptivas provenientes de fora no sentido de compensar simbolicamente os grupos menos bem tratados pelo sistema, como são seguramente as mulheres e as «pessoas de cor diferente», e já mais duvidosamente os profissionais da palavra e da imagem desde os «media» aos artistas, enquanto não surgem outros…

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O primeiro passo dado em Portugal no sentido de uma mutação artificial, subjacente a essa pretensa internacionalização das marcas históricas de uma sociedade como a nossa, foi o infausto «acordo ortográfico» proclamado por unanimidade pelo parlamento português e gradualmente imposto, sem contudo a aceitação efectiva de muitas pessoas em Portugal e em quase todas as antigas colónias, incluindo o Brasil, o qual continua a não seguir muitas das práticas ortográficas homologadas! A demonstrar a incongruência destas intervenções estatais sobre a evolução cultural do país aí está o facto de, muitos anos depois, o mesmo jornal ou a mesma editora publicarem como boas quaisquer ortografias!

Após este abuso do poder, cujas funestas consequências se podem observar todos os dias nas escolas de todos os graus, é de assinalar a forma invasiva, para não dizer autoritária, como o Estado interfere através dos seus pretensos órgãos culturais junto dos criadores, tornando-se rapidamente no cliente principal dos chamados agentes culturais, quando não único como sucede presentemente. Os efeitos económicos desta prolongada situação que culminou no financiamento estatal aos «massmedia» fazem-se hoje sentir como nunca devido à pandemia, vendo-se o governo forçado a distribuir dinheiro às suas incontáveis clientelas, o que naturalmente não pode deixar de influenciar as orientações espontâneas dos criadores e dos comunicadores profissionais.

Não é nada que não se tenha visto antes mas agora isso sente-se cada vez mais, provocando rupturas profundas entre gerações e entre camadas sociais, alimentando assim conflitos inorgânicos e desnecessários. Um dos efeitos da actuação governamental é, precisamente, a abertura de um campo antes inexistente mas onde hoje floresce o Chega. Estava, pois, criado o ambiente insalubre no qual os dirigentes estatais de um organismo como o «Conselho de Concertação Social» se puseram a lançar entre nós uma «novilíngua» orwelliana como a cúpula da arquitectura do corporativismo económico e político, onde os parceiros sociais não contam para nada e não terão maneira de recusar a «novilíngua»!

O resultado, neste campo como no resto das actividades humanas, é a desaparição da livre iniciativa produtiva bem como dos seus ganhos e perdas, aquilo que explica a persistente ausência de crescimento económico e de mudança social. Com o próximo advento da «novilíngua», deixarei de ser uma pessoa com a minha biografia para me tornar num indistinto «membro da população pensionista»… Acredito que personagens como o presidente e a vice-presidente do tal Conselho não nos queiram mal mas a mera terminologia que já divulgaram e pretendem impor, em nome de uma modernidade fabricada algures ontem ou esta manhã, já nos transformou em números da estatística estatal… Orwell tinha razão: a «novilíngua» é o fecho natural da cúpula dos Estados que tudo querem, podem e mandam.