“As melhores vinhas são as que estão viradas para Norte”: estas são algumas das sábias e curiosas palavras escritas por um antigo agrónomo e escritor cartaginense que se chamava “Magon”. Outras frases, princípios e muito conhecimento agronómico pode ser encontrado no que ainda resta dos seus extensos textos. Magon, escreveu vinte e três livros, foram escritos há cerca de dois milénios e meio atrás. Posteriormente trazidos para Roma, depois do declínio de Cartago, e aparentemente destruídos pelos Romanos. No entanto há traduções antigas, a mais completa talvez uma versão grega de uma parte do seu trabalho.
As vinhas são, de todas as culturas, provavelmente a cultura mais antiga e a que tem maior e a mais sinergética relação com o homem. Nós tiramos dela benefícios que nos dão muito prazer, mas também elas necessitam de muitas e delicadas intervenções para assim poderem produzir bem.
Existem outras culturas antigas bem como outras espécies igualmente milenares por nós cultivadas, sendo algumas destas os cereais, as amendoeiras ou certo tipo de leguminosas, mas a vinha consegue de facto ter connosco mais ligações históricas e antropológicas do que qualquer outra. É também, talvez a primeira cuja o sistema de produção se manifeste totalmente num contexto de “pomar”, ou seja, numa plantação contínua e ordenada e não numa planta ou árvore única ou isolada num jardim ou horta que também dá frutos.
A vinha é podada, conduzida e regada. Os ramos, cachos e por vezes bagos são mondados criteriosamente. As videiras crescem vigorosamente de março até junho e posteriormente a estes meses passam a concentrar as suas forças nos seus frutos, os cachos. As uvas começam a pintar ou a adocicar em julho e agosto. As primeiras picadas dos pássaros indicam o seu amadurecimento. Depois das vindimas a folhagem muda de cor, já em pleno inverno caem todas as folhas. Passam o inverno nuas ou despidas, até acordarem novamente, no ano seguinte. Os seus olhos e rebentos verdes-claros novos sinalizam o começo de um novo ciclo.
Já no livro de Génesis, depois do dilúvio e das cheias, quando Noé desembarca da arca em terra seca planta uma vinha. Os egípcios também as plantavam, em arcos ou em latadas para depois consumirem as suas uvas ou fazerem com elas vinho. Na última ceia também esteve presente o vinho, líquido que marca presença em qualquer retrato ou pintura antiga que ilustre um banquete ou festa. No fundo falamos da bebida dos deuses, mas também da dos homens, que, para existir teve de haver um encontro perfeito entre a natureza e o homem, entre a sensibilidade natural e o trabalho rural.
As vinhas ocupam a paisagem do sul da Europa, cultura que embora não tenha sido introduzida pelos Romanos, foi por eles uniformizada, como muitas outras. Fazem parte das tradições de tantos países, e os vinhos delas elaborados compõem tantas mesas. As ligações à religião, à literatura e à arte também são vastas. As vinhas da Ira, foi título do famoso livro de Steinbeck e as vindimas foram artisticamente retratadas no único quadro que Van Gogh ironicamente conseguiu vender durante a sua vida, sendo o seu título: A vinha vermelha.
Embora as vinhas gostem de calor, também podem sofrer com o escaldão. Sendo uma cultura tão adaptada ao sul da Europa e a toda a zona da bacia do Mediterrâneo, tanto norte como sul como oriental, fica a seguinte pergunta: serão estes danos resultado das alterações climáticas ou de maior sensibilidade das novas castas? Será característica dos novos sistemas de crescimento e de produção ou foi sempre assim?
Voltando a Magon, provavelmente a exposição que sugere para a plantação das vinhas faz com que os cachos possam melhor resistir às secas e calores, conselho útil para os dias de hoje pois a exposição continua a ser um dos mais significativos fatores que podem aliviar ou agravar os efeitos das temperaturas altas, aliado a disponibilidade de água.
Van Gogh pintou uma vinha muito vermelha, que estava em plena vindima, terá sido um ano quente no sul de França? As vinhas que Noé plantou seriam regadas? E quais castas a compunham? A Magon, e a este respeito, voltaria a fazer o mesmo tipo de perguntas: em Cartago também havia escaldão das uvas e dos cachos em anos quentes?
Os cartagineses praticavam uma agricultura forte, aperceberam-se da importância da agricultura na economia. As cidades ou vilas eram rodeadas por uma agricultura produtiva, dividida em três tipos: horticultura, vinhas e olivais e por fim agricultura extensiva, como os cereais. Provavelmente os animais aproveitavam os restos dos três tipos de campos, sempre no “pós-colheita” ou em “contraciclo”. Aproveitavam o que o homem não apanhava. Pastavam estrumando as terras enquanto também faziam o valioso trabalho de controlar os pastos e ervas indesejadas, transformando estes recursos não utilizados pelo homem magicamente em carnes deliciosas.
A verdadeira sabedoria é intemporal, e na agricultura por vezes inovar é saber olhar para o passado e fazer o que já foi feito, mas de uma forma um bocadinho melhor. Os conselhos de Magon são úteis, mesmo ou, se calhar até em especial, nos tempos atuais. Nestes dias quentes de verão gostaria de partilhar um copo de vinho branco com ele, enquanto comíamos umas uvas de mesa, umas amêndoas e um queijo saboroso e salgado. Este petisco seria acompanhado de uma boa e rica conversa sobre agricultura, clima e a paisagem.