Tenho acompanhado a polémica situação da família que recusa permitir que os seus filhos frequentem a disciplina obrigatória de Cidadania e Desenvolvimento. Como é amplamente sabido, as razões invocadas enquadram-se na liberdade de consciência e de educar os filhos.

O problema parece dividir a discussão em dois grupos.

Há quem afirme rigidamente a obrigatoriedade da disciplina, equiparando-a a Matemática ou História, e nem querem ouvir falar dos programas e dos conteúdos alegadamente ideológicos que o currículo de Cidadania pressupõe. A Matemática e a História também podem ser ensinadas ideologicamente. Pois podem. E são, realmente.

Por outro lado, há quem afirme rigidamente a liberdade que as famílias têm e devem ver reconhecida por parte do Estado de educar os seus filhos de acordo com princípios, valores, ideias e pressupostos por si validados, o que neste caso se concretizaria na possibilidade de não frequentar a disciplina de Cidadania, onde a par do respeito pela segurança rodoviária e da sensibilização para uma educação ambiental, estão também temas como a sexualidade.

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Antes ainda de entrar no mérito do que, a meu ver, está na origem das “cabeçadas” que o tema gera, permito-me fazer uma ressalva. É evidente que o tema da sexualidade é delicado. E é assim desde sempre. Basta pensar na dificuldade dos adultos quando as crianças começam a perguntar como é que nascem os bebés e de onde é que eles vieram. Não é um problema inventado pela família de Famalicão nem pelo Ministério da Educação.

Todos os adultos coram quando as crianças fazem essa pergunta pela primeira vez. Sorrimos e uns achamos melhor responder com cegonhas, outros assobiamos para o ar, outros ainda queremos desenvolver o tema para que não restem dúvidas nas mentes curiosas.

Ninguém cora se um filho ou sobrinho ou aluno lhe perguntar a tabuada do 6. Ou se calha cora, porque nunca a decorou. Mas não se trata seguramente de um estremecimento sobre a delicadeza que o tema traz, porque nos constitui como pessoas, porque as respostas e a maneira como se acompanham essas perguntas pode realmente estruturar consciências e personalidades.

Apesar da diferença objetiva entre uns temas e outros – rapidamente comprovada com o teste infalível “faz corar ou não” –, a questão de fundo é a que pode clarificar um caminho que evite andarmos aqui às “cabeçadas”. Porque o mesmo problema de consciência pode acontecer com a disciplina de História. Quantas vezes cheguei a casa a contar as aulas de História sobre temas de política contemporânea e a minha avó respondia, isso não foi bem assim… quem é esse professor?…

Esta dificuldade concreta surgiu por causa de uma questão simples: existe uma disciplina obrigatória que traduz a preocupação do Ministério da Educação em garantir que os alunos terminem a escolaridade obrigatória com um perfil de conhecimentos e competências que lhes permita ser cidadãos responsáveis. Nesses, entendeu incluir âmbitos como literacia financeira, a participação democrática e os media. Além destes e de outros semelhantes, decidiu que os cidadãos têm de saber várias coisas ligadas à sexualidade, à intimidade e à afetividade. E que é na escola que têm de as aprender, seguindo linhas orientadoras unívocas e incontestáveis.

A disciplina de Cidadania existe tendo em vista uma escola que produz cidadãos que pensam determinadas coisas e têm determinadas capacidades. E nessas coisas que pensam e de que são capazes, o Estado considera que está a desmistificação da intimidade e da diferenciação sexual; o Estado decidiu que os cidadãos portugueses têm de ser instruídos de forma a superar a visão patriarcal e retrógrada da família com pai, mãe e filhos; o Estado português decidiu que os jovens devem ter consciência cívica sobre a sua sexualidade e a dos outros, nos termos centralmente definidos.

Será que é assim tão absurdo querer atender à diversidade das famílias e às suas várias sensibilidades quando se trata da educação dos seus filhos? Será que nos podemos questionar sobre o facto de, a continuar assim, a consciência cívica passar ser uma espécie de mentalidade promulgada por despacho?

Muitas vezes, as famílias que encontro no momento de inscrição dos filhos na Creche ou no Pré-escolar ficam surpreendidas com a pergunta “porque é que deseja este projeto educativo para os seus filhos?”, como se fosse a primeira vez que pensam nisto. O que desejamos para os nossos filhos?

No meio das várias discussões, é inevitável tomar partidos e reconhecer argumentos mais válidos do que outros, mas o problema mais agudo é haver verdadeiramente pouco espaço e pouco hábito de fazemos esta pergunta. Que escola queremos? Qual é o papel da escola? Como posso contribuir no meu contexto para este diálogo e para esta construção?

Sabemos que o sistema instalado pressupõe, em certa medida, uma organização granítica, mas se não houver lugar para estes momentos, começará a decair alguma coisa da nossa humanidade e da nossa sociedade. E assim, as “cabeçadas” vão continuar…