Já se sabe que a recuperação europeia se baseará nos eixos da transição climática e digital, mas de acordo com os dados divulgados até ao momento, a “bazuca fiscal” parece estar desaparecida do “paiol” do fundo de recuperação.

Os investimentos previstos de 1.670 milhões de euros no Plano Preliminar de Recuperação e Resiliência para a transição digital da administração pública, desdobram-se em 11 projectos, desde o SIRESP e o 112, aos serviços consulares, passando pela Justiça, Segurança Social e Saúde.

Não obstante estar muito focado na administração pública e pouco no sector privado, o Plano enuncia medidas de forma muito fugaz e genérica para a área tributária, referindo apenas que “(…) as áreas da Justiça, Segurança Social, Negócios Estrangeiros e Finanças beneficiarão de uma extensa modernização tecnológica, simplificação, actualização da oferta de serviços, nomeadamente os sistemas nucleares de suporte à actividade, alinhados com paradigmas tecnológicos e processuais assentes no digital, no conhecimento e gestão em tempo real e no funcionamento em redes colaborativas, quer transversais à AP, quer à escala global”, acrescentando que “(…) pretende-se ainda intervir no sistema de informação patrimonial, com vista à implementação adequada de um sistema de tributação dos prédios rústicos ajustado às potencialidades de cada prédio (…)”.

É pouca aspiração para tamanha demanda…

Com este alinhamento, um dos custos de contexto que mais pesam sobre o país aos olhos dos investidores pode ficar com resolução adiada: a complexidade, morosidade, opacidade e ineficiência da máquina fiscal que pesa na competitividade do país. A isso acresce o incremento da necessidade de troca de informações a nível internacional e o aumento exponencial dos dados dos contribuintes que necessitam de tratamento e análise.

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O momento não poderia ser mais apropriado para operar esta transição digital fiscal: à ajuda europeia, soma-se a revolução tecnológica em curso, com a inteligência artificial, a robótica, a computação em nuvem, a internet das coisas, o recurso à “data science”, a rede 5G…

E muito há para fazer: a título de exemplo, Portugal é o terceiro país da Europa no tempo que as empresas despendem no cumprimento de obrigações declarativas, com uma média de 63 horas por exercício, só ultrapassado pela Grécia e Eslovénia.

Prova de que a oportunidade que constitui a utilização dos meios tecnológicos não foi ainda totalmente “assimilada” pelo Governo é o Programa “IVAucher”, com grande complexidade de aplicação prática e cujo procedimento concursal a Autoridade da Concorrência já sinalizou por diversas vezes, a mais recente por, alegadamente, estar a favorecer o operador já estabelecido. O “IVAaucher” – independentemente do muito questionável efeito virtuoso na economia e de ainda nem sequer se saber quando entrará em vigor -, constituiu uma excelente oportunidade para testar a utilização das novas tecnologias na área tributária, mas surge, surpreendentemente, “amarrado” ao mecanismo de compensação interbancária de pagamentos electrónicos com cartões bancários!

A transição digital fiscal que urge empreender em Portugal deverá ser alicerçada em 4 pilares:

  1. Desenho de uma estratégia digital de gestão agregada de todos os serviços da AT centrada no contribuinte. O contribuinte deve ocupar o centro de todas as soluções e processos desenhados num novo modelo de gestão que englobe todos os serviços da AT. O espelho de uma estratégia centrada no contribuinte reflectirá uma maior facilidade de cobrança e maior cooperação por parte dos sujeitos passivos.
  2. Adaptação do quadro legal à nova realidade digital aplicada à fiscalidade. A AT deve publicar regularmente guias práticos interactivos sobre os direitos dos contribuintes, que os auxiliem no cumprimento das obrigações fiscais. As normas fiscais devem ser de mais fácil aplicação através da utilização das novas tecnologias (e.g. plataformas e aplicações digitais, sistemas de certificação de identidade, modelos preditivos, algoritmos e sistemas analíticos, serviços da cloud), contribuindo, desta forma, para o reforço dos direitos dos cidadãos e para a melhoria da sua relação com o Estado
  3. Enquadramento operacional e de formação dos quadros da AT. O conhecimento e utilização das novas exigências tecnológicas devem servir de crivo no recrutamento de novos trabalhadores e no modelo de organização do trabalho, bem como critério na formação profissional, com divulgação pública da avaliação de desempenho.
  4. Investimento a nível do hardware e software. A transição digital só será possível com um forte investimento em equipamentos e programas adequados com vista à prestação de serviços digitais integrados, que possibilitem alcançar poupanças e redução de custos.

Com esta reforma, uma nova AT 2.0 estaria preparada para promover um conjunto de medidas que permitiriam reduzir os custos fiscais de contexto, a saber:

  • Maior transparência, simplificação, segurança e eficiência na cobrança dos impostos, com vista a contribuir, a par de outros factores e a médio prazo, para a redução da carga fiscal em sede IRS e IRC;
  • Maior articulação dos serviços com as (crescentes) competências dos municípios em matéria fiscal;
  • Maior proximidade e personalização da acção da AT e interligação aos vários serviços do Estado;
  • Divulgação de dados sobre a execução orçamental dos vários impostos e dados estatísticos para aferir da eficiência do sistema fiscal;
  • Maior celeridade do reembolso do IVA e na devolução dos impostos liquidados que tenham sido anulados por decisões administrativas;
  • Criação de um sistema de controlo automático do cumprimento tempestivo das decisões judiciais por parte da AT, com vista a reduzir o número de processos de execução de julgados;
  • Aprofundamento, simplificação e agilização do procedimento da compensação de créditos não tributários sobre a administração directa do Estado;
  • Criação do procedimento de compensação de créditos tributários entre diferentes impostos, bem como com a Segurança Social.

A revolução tecnológica constitui uma oportunidade única para construir uma AT 2.0, moderna, eficaz e próxima do contribuinte, reduzindo a fraude e evasão fiscais e, simultaneamente, permitindo um maior escrutínio público sobre a afectação e aplicação das receitas fiscais. Este constitui o elemento chave da equação: quanto mais perceptível for para os cidadãos e empresas onde é aplicado o dinheiro dos impostos, mais eficiente será a máquina fiscal e mais colaboração se obterá dos contribuintes.

Para tal é necessária uma visão holística traduzida numa estratégia concreta, com um plano de digitalização da administração tributária alicerçado num sistema de avaliação de medidas claramente previstas no Plano Nacional de Recuperação e Resiliência.

Estaremos ainda a tempo de encontrar a “bazuca” desaparecida do “paiol”?