O direito à objeção de consciência está consagrado no artigo 41.º, n.º 6, da Constituição portuguesa («É garantido o direito à objeção de consciência, nos termos da lei»). Trata-se de um corolário da liberdade de consciência, religião e culto, a qual se caracteriza como «inviolável» no n.º 1 desse mesmo artigo. O exercício desse direito pode decorrer de convicções religiosas, mas mais amplamente de ditames de consciência, não necessariamente ligados a essas convicções. E pode ser também considerado um corolário do respeito pela integridade moral das pessoas, que o artigo 25.º, n.º 1, do mesmo diploma também define como «inviolável».

O direito à objeção de consciência reflete o primado da pessoa, e sua dignidade, sobre o Estado e a autoridade do direito positivo. Um Estado que se funda na dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da Constituição portuguesa) reconhece, consequentemente, o direito à objeção de consciência, o que já não sucederá com um Estado totalitário

Nesta linha, a Lei da Liberdade Religiosa (Lei n.º 16/2001, de 22 de junho) delimita os imperativos que poderão justificar a objeção de consciência. Depois de, no n.º 1 do seu artigo 12.º, considerar que «a liberdade de consciência compreende o direito de objetar ao cumprimento de leis que contrariem os ditames impreteríveis da própria consciência», no n.º 2 do mesmo artigo declara que se consideram «impreteríveis aqueles ditames de consciência cuja violação implica uma ofensa grave à integridade moral que torne inexigível outro comportamento».

Por aqui pode aferir-se do peso e da importância relativos destes direitos no quadro constitucional. Não será exagero atribuir aos direitos de respeito pela integridade moral e pela liberdade de consciência e religião um peso relativamente superior no confronto com outros direitos e liberdades (com assento constitucional ou não) só ultrapassado pelo direito à vida, pressuposto de todos os outros direitos. Os domínios da integridade moral e da consciência situam-se na esfera mais íntima, por um lado, e de maior relevo no plano das opções existenciais, por outro lado, da pessoa. E daí a sua indeclinável importância. Uma importância que se estende, pois, ao direito à objeção de consciência enquanto corolário desses direitos e que não pode ser ignorada nesse confronto com outros direitos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É sintoma dessa importância que o direito à objeção de consciência tenha começado por afirmar-se, em muitos ordenamentos jurídicos, precisamente em relação ao serviço militar obrigatório, certamente o dever do cidadão perante o Estado mais gravoso no plano da limitação de liberdade pessoal, justificado por indeclináveis exigências de sobrevivência da comunidade política. Mesmo perante esse tão forte dever, porque não podem ser desprezadas razões de consciência igualmente fortes (desde que comprovada a sua autenticidade), pode ser invocada a objeção de consciência.

A força e incomparável relevância dos imperativos de consciência compreende-se quando pensamos em vários exemplos históricos, em que esses imperativos se sobrepõem aos mais preciosos valores pessoais. Assim, o exemplo de Franz Jägestätter (retratado no filme de Terrence Malik Uma vida escondida): um camponês austríaco (beatificado em 2007), que, por razões de consciência, recusou prestar fidelidade a Adolf Hitler (em quem via incarnada a subversão completa dos valores cristãos) e assim servir o exército nacional-socialista, recusa que lhe custou a vida e, por isso, gravíssimos danos causou à sua querida família. Assim também, o exemplo do cônsul português Aristides Sousa Mendes (recordado no museu recentemente inaugurado na sua antiga casa de Cabanas de Viriato), que, também por imperativo de consciência e para além de cálculos de prudência política e diplomática, salvou muitas vidas: a sua fidelidade a esse imperativo comprometeu a sua carreira profissional, com graves consequências para si a para a sua família. E também o exemplo do Rei Balduíno (enaltecido há dias pelo Papa Francisco), que, também por imperativo de consciência, abdicou por um dia para não promulgar a legalização do aborto, correndo o risco de o seu gesto provocar uma forte contestação da sua legitimidade como monarca.

É precisamente por causa da legalização do aborto que o direito à objeção de consciência está hoje sob ameaça.

Vem sendo sustentado que o direito à objeção de consciência não pode servir para negar o direito ao aborto e que, no limite, a um qualquer médico ou profissional de saúde poderá ser imposta a prática de um aborto, quando não existam alternativas e quando essa seja a única forma de garantir à mulher o exercício desse pretenso direito. Ou seja. esse pretenso direito ao aborto deverá sobrepor-se ao direito à objeção de consciência. Essa sobreposição não tem, porém, qualquer fundamento ético e jurídico.

Mas é esse princípio que, de forma inequívoca, embora algo sub-reptícia, decorre do Projeto de Lei n.º 264/XVI, recentemente apresentado por deputados do Partido Socialista, que «procede à 3.ª alteração à Lei n.º 16/2017, de 17 de abril alterando alguns dos requisitos para a realização da interrupção voluntária da gravidez não punível e densificando o regime de exercício do direito individual de objeção de consciência». Esse projeto de lei altera a redação do  artigo 6.º da Lei n.º 16/2017, de 17 de abril, o qual passaria a estatuir que o exercício do direito individual à objeção de consciência não pode pôr em causa o direito à liberdade das mulheres que decidem interromper a gravidez (n.º 1) e que o acesso ao direito à interrupção voluntária da gravidez e à qualidade do serviço de saúde prestado não pode ser afetado pelo exercício individual do direito à objeção de consciência (n.º 5). Não se trata. Pois, de «densificar o direito à objeção de consciência», trata-se de o limitar gravemente.

Poderia questionar-se se o direito positivo português vigente consagra um verdadeiro direito ao aborto. A dúvida poderia surgir pelo facto de muitas vezes se falar em simples “descriminalização” do aborto (designadamente na pergunta que serviu de base aos dois referendos sobre a questão). Mas a lei vigente não se limite a descriminalizar essa prática, mantendo a sua ilicitude (como sucedeu com a descriminalização do consumo de droga, que não se tornou por isso um direito e passou a ser sancionado de outra forma). A lei vigente consagra a colaboração e financiamento do Estado na prática do aborto. Por isso, pode dizer-se que reconhece um direito a essa prática.

No entanto, esse direito não é um direito constitucionalmente tutelado, como é o direito à objeção de consciência. Entre este direito, constitucionalmente tutelado como corolário dos direitos de respeito pela integridade moral e pela liberdade de consciência e religião, com todo o peso que daí decorre, e um direito sem tutela constitucional, não pode o primeiro deixar de prevalecer.

Os sucessivos acórdãos do Tribunal Constitucional português (n.ºs 25/84, 85/85, 288/98 e 617/06) que (sempre com um significativo número de votos de vencido) aceitaram a constitucionalidade da legalização do aborto em determinadas condições e circunstâncias nunca reconheceram um pretenso direito ao aborto como direito fundamental. Analisaram a questão na perspetiva da política criminal (da simples descriminalização) e de alguma limitação ao princípio da inviolabilidade da vida humana consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, mas nunca ao ponto de elevar o direito ao aborto ao nível de direito fundamental.

Não se ignoram a recente alteração da Constituição francesa que reconhece o direito ao aborto como direito fundamental, nem a recente Resolução do Parlamento Europeu 2024/2655 sobre a inclusão desse direito na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Mas  consagrar constitucionalmente o direito ao aborto como direito fundamental representaria uma insuperável contradição quando se consagra o direito à vida (ou o princípio da inviolabilidade da vida humana, como, ainda mais categoricamente, afirma a Constituição portuguesa no seu artigo 24.º, n.º 1) como o primeiro dos direitos, raiz, condição e pressuposto de todos os outros direitos (quando se suprime a vida de uma pessoa, suprimem-se todos os seus direitos). Não pode uma Constituição consagrar ao mesmo tempo o direito à vida e o direito a suprimir uma vida. Só seria possível superar essa contradição se considerássemos (o que sempre foi rejeitado pelo Tribunal Constitucional português) que a vida do nascituro vítima do aborto não é vida humana protegida nos termos desse artigo 24.º, n.º 1.

Tentativas de sobrepor o pretenso direito ao aborto ao direito à objeção de consciência não são apenas dos tempos mais recentes.

No ano de 2010 uma iniciativa no quadro da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa que conduziu à elaboração do relatório, da responsabilidade da deputada britânica Christine Mac Cafferty, Women´s acess to lawful medical care: the problem of unregulated use of consciencious objection, e que conduziria, na sequência desse relatório, à aprovação de uma resolução e uma recomendação (sem efeito vinculativo para os Estados membros, como é próprio destes instrumentos, mas com inegável alcance político) que sobrepunham o direito ao aborto ao direito à objeção de consciência desencadeou, na altura, uma vasta mobilização da sociedade civil que se traduziu na rejeição desses projetos e na aprovação de uma outra resolução, a Resolução 1763 (2010), a qual reafirma o direito à objeção de consciência com a dimensão relevante que tem tido até agora na esmagadora maioria dos ordenamentos jurídicos europeus. Essa mobilização e o seu sucesso espelham bem a importância da questão em jogo.

Esta outra resolução reafirmou inequivocamente esse direito, nos seguintes termos: «1- Nenhum hospital, estabelecimento ou pessoa pode ser sujeito a pressões, ser responsabilizado ou sofrer qualquer tipo de discriminações pela sua recusa de realizar, acolher, colaborar em ou submeter-se a um aborto ou uma eutanásia, ou pela sua recusa de realizar qualquer intervenção destinada a provocar a morte de um feto ou de um embrião humano, sejam quais forem as suas razões».

É de salientar, a propósito, outro aspeto em que o referido Projeto de Lei n.º 264/XVI, do Partido Socialista, representa um ataque à liberdade de consciência e ao direito à objeção de consciência como seu corolário. Ao contrário do que é claramente afirmado na referida Resolução 1763 (2010), da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, esse projeto (no artigo 6.º, n.ºs 1 e 4, da redação alterada da Lei n.º 16/2017, de 17 de abril) rejeita a dimensão institucional desse direito e pretende reduzi-lo a um direito puramente individual. Tal significa que não poderá um qualquer estabelecimento de saúde (um hospital católico, por exemplo) negar a prática do aborto invocando razões ligadas ao ideário que inspira a sua atuação.

Ora, a liberdade religiosa (e a liberdade de consciência a ela estreitamente ligada) tem uma dimensão pessoal, mas também uma dimensão comunitária e institucional. Titulares do direito respetivo não são apenas pessoas, mas também comunidades religiosas. É o que decorre do artigo 41.º, n.º 4, da Constituição portuguesa, do artigo 18.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do artigo 9.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e do artigo 10.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

É verdade que a consciência assume uma dimensão fundamentalmente pessoal. Mas por detrás de qualquer instituição estão fins que refletem opções éticas (de consciência, portanto) das pessoas que a iniciaram e que prosseguem esses fins em conjunto, como obra coletiva que tem uma identidade própria e inconfundível ligada a esses fins e a essas opções éticas. Neste sentido, deve dizer-se que atenta contra essa dimensão coletiva e institucional da liberdade de consciência obrigar um estabelecimento de saúde a autorizar que nele se pratiquem atos contrários, no plano ético, ao ideário que está na base da sua fundação e que inspira toda a sua atividade. Isso sucederá com a prática do aborto ou da eutanásia num estabelecimento de saúde católico, ou num estabelecimento de saúde que, não sendo confessional, se rege pelas tradicionais regras de deontologia médica contrárias a tais práticas.

Recordo-me do tempo em que os partidários da legalização do aborto argumentavam que esta era uma exigência da tolerância porque «ninguém é obrigado a abortar» e, por isso, também ninguém deve ser proibido de o fazer. É certo que essa argumentação esquecia que o nascituro é «obrigado a ser abortado», obviamente sem dar para tal o seu consentimento. Mas com a limitação do direito à objeção de consciência nos termos do referido projeto de lei, deixa de ser verdade que «ninguém é obrigado a abortar»: um profissional de saúde pode ser obrigado a agir contra sua consciência e a praticar um aborto ou colaborar nessa prática quando não haja alternativas.

A liberdade de consciência está, pois, em perigo. Importa salvá-la.