Finalmente podemos celebrar, a democracia foi salva in extremis. Depois de ter orquestrado um golpe de Estado Trump foi vencido quando o assalto ao Capitólio falhou. Evitou-se uma guerra civil que poderia ter dividido a América em duas novamente. Estamos obviamente a ironizar, não obstante um historiador do futuro que leia as notícias sobre a vida política norte-americana no início de 2021 poderá pensar que a situação era deveras perigosa. Não o foi, estávamos bem longe duma situação como a que ocorreu em Paris no ano de 1934 – o Qanon não é a Action Française – ou daquela que ocorreu na capital norte-americana em 1814 – o que resta do Império Britânico já não tem força para queimar Washington DC.
Apesar de ter incrementado as suas margens com os votantes afro-americanos e latinos Trump perdeu margem no voto branco, que ainda é o crucial para entrar na Casa Branca. Podemos, então, eliminar um dos mitos atribuídos a Trump, aquele de ser um candidato que ganha no presente mas que arruinará as possibilidades republicanas no futuro. Se 2020 provou alguma coisa foi que o partido republicano atingiu números nunca antes vistos neste século com as minorias. Esta foi a estratégia Kushner – casado com Ivanka Trump. Ann Coulter, a papisa que escreveu o livro que ganhou a presidência a Trump em 2016, nunca perdoou esta mutação trumpiana. Segundo a influentíssima autora o candidato foi excelente, o presidente foi medíocre.
Devemos esclarecer que o presidente nos Estados Unidos da América não tem o mesmo poder que o presidente na China, na Rússia, ou mesmo na França ou no Brasil; está acorrentado pelos famosos freios e contra-pesos – checks and balances. Isto é a ordem normal das coisas também em muitos sistemas políticos europeus: os populistas contestam o sistema, mas uma vez tendo ganho uma parte importante do voto passam de vândalos a guardiães do templo. Pensemos no Movimento 5 Stelle em Itália ou no Podemos em Espanha, de marginais a partidos governativos. Donald Trump teve que trabalhar com bastantes republicanos que desprezava profundamente, sem eles, por exemplo, teria sido impeached em 2020. Coulter, por vezes, menospreza estas realidades do jogo político, pedindo a Trump que modifique estruturalmente o bipartidarismo dos Estados Unidos, uma tarefa hercúlea.
Muito se disse sobre a perda do Arizona e ainda mais da Geórgia. Porém, Trump não precisava desses dois estados para segurar a presidência, ele perdeu-a onde a tinha ganho, no Rust Belt. Faltou-lhe a Pensilvânia, o Wisconsin e o Michigan. Porquê? Uma combinação letal que havíamos menosprezado, a afabilidade de Biden e o medo da morte.
Biden foi muito menos repelente para as classes brancas trabalhadoras (blue-collar) do que Hillary Clinton. Esta foi vista por muitos trabalhadores como uma senhora altiva, aristocrática e arrogante – e como esses estados costumavam ser democratas ela não se esforçou demasiado em cortejá-los. Mas há mais.
Ferguson, no seu dinâmico The Square and the Tower, escreveu o seguinte: “O candidato Donald Trump dominou completamente Hillary Clinton em ambos Facebook e Twitter. Se as plataformas de rede social não existissem, Trump teria sido forçado a conduzir uma campanha mais convencional, nesse caso os recursos financeiros superiores da sua oponente – que gastou mais do que ele por mais de dois para um – teriam absolutamente sido decisivos.” Mas a agenda trumpista não partilha a cosmovisão das duas empresas citadas. E elas nunca o esconderam, tendo tirado as conclusões que acharam necessárias desde 2016.
Falemos agora do medo. Esse é essencial à vida e desempenha um papel capital. À célebre exortação de João Paulo II “não tenhais medo” preferimos a asserção de François Mauriac “o medo é o começo da sabedoria”. Depois de um ano absolutamente bizarro – devido à pandemia do coronavírus – uma camada mais velha do eleitorado norte-americano foi violentamente relembrada de que não somos imortais. Mas os herdeiros da civilização greco-romana já não sabem que é por causa disso mesmo que a vida vale a pena, como nos diz Aquiles (interpretado por Brad Pitt) no filme Troy:
“Os Deuses invejam-nos, eles invejam-nos porque somos mortais, porque qualquer momento pode ser o nosso último, tudo é mais belo porque estamos condenados; tu nunca serás mais encantadora do que és agora, nós nunca estaremos aqui outra vez…”
Só uma massa anestesiada é que se prende a impossíveis e aceita tudo sem questionar, o último homem profetizado por Nietzsche é mais actual do que nunca antes.
Trump foi contumaz até ao fim. Não concedeu a eleição, não esteve na passagem de poder para Biden e alegou – juntamente com os seus militantes – a existência de fraude importante o suficiente para o derrotar ilicitamente. A narrativa esposada pelo mainstream – não só o mediático – é simples, uns dirão mesmo simplista: Trump perdeu e é mau perdedor, tentou roubar a eleição ao legítimo vencedor. Continuem as vossas vidas, não há nada para ver aqui. As sondagens valem o que valem – uma apresentou uma vantagem de Biden no Wisconsin de 17%, na realidade foi de 1% – e não são oráculos, todavia, várias mostram percentagens recorde na crença que a eleição foi roubada. Mesmo entre os não afiliados e os democratas existe algum cepticismo. E como a História demonstrou várias vezes a legalidade sem a legitimidade é uma bomba-relógio. A explicação que uma parte do eleitorado foi enfeitiçada por Trump e já não consegue pensar sozinha parece-me extremamente fraca. Estamos nós face ao impronunciável? Entrámos nós na América de Weimar? Encorajamos todos a ler o interessante artigo “The Weimarization of the American Republic” de Aaron Sibarium.
A pandemia foi um presente dos céus para todos aqueles que queriam ver Trump fora da Casa Branca; teriam vencido sem ela? Duvidoso. Isto deveria interpelar-nos por duas razões. Primeiro porque é a primeira vez que uma eleição de um membro permanente do Conselho de Segurança na ONU é moldada por uma pandemia; segundo porque se neste caso serviu para desalojar do poder um indesejável – segundo os cânones da doxa – no futuro uma situação semelhante poderá desalojar alguém desejável a favor dum imprevisível populista. Pense-se no caso de Macron na presidencial de 2022. Quando a Big Pharma não disse que Trump estava correcto ao afirmar que a vacina estaria pronta ainda em 2020 influenciou decisivamente a eleição; a onda de que a vacina ainda demoraria foi fantasticamente surfada pelos adversários de Trump, acusando-o de mentiroso.
William Barr disse a Wolf Blitzer que a massificação do voto por correio está vulnerável a fraude substancial. Disse-o baseando-se na conclusão da comissão bipartidária liderada por Jimmy Carter e James Baker. Posteriormente acrescentou que esta posição foi consensual até a administração Trump tomar posse. A França, para citar somente um exemplo, baniu o voto pelo correio em 1975 depois de ter constatado que este engendrava fraude. Cada um pensará o que quiser – cada cabeça sua sentença.
Os mais velhos saberão com certeza que a eleição presidencial americana de 1960 foi bastante controversa. Também aí se combateu uma suposta fraude. Reza a lenda que Richard Nixon decidiu ceder, para não criar uma divisão incomensurável no país; se assim o foi Trump seguiu o caminho oposto. A vitória de John Fitzgerald Kennedy (também conhecido como JFK) face a Nixon teria sido conseguida através de manobras ardilosas em Chicago e no Texas. Frequentemente esquecemo-nos que a evolução dos meios tecnológicos cria não somente facilidades, mas igualmente novos desafios no campo da segurança.
Regressará Trump? Se sobreviver ao segundo impeachment teoricamente poderia fazê-lo em 2024. Uma coisa é certa, não veremos Trump como senador, se voltar só será mesmo para a Casa Branca. Numa acção judicial que contesta a validade das eleições declara-se que Gondor não tem rei – Gondor has no king. Esta menção ao mundo inventado por Tolkien lembra-me uma conferência de João Pereira Coutinho no Brasil. Aí ele alertou para a perigosidade de misturar a fantasia com a realidade na política: “[…] pode gerar-se um processo de dessensibilização em relação ao real; ou seja, nós podemos ser surdos para o grito real quando ainda estamos ensurdecidos com o grito que o rei Lear lançou ao saber da morte da filha.” Estes mais ardentes partidários de Trump sonharam com uma figura épica como Cromwell ou Bonaparte. A decepção só poderia ser amarguíssima.
Em defesa dos ditos partidários podemos dizer que 2020 provou-nos que o real também pode ser digno dos romances de ficção. Há uma década atrás seria impensável imaginar um ano como o que passou, onde a pandemia fundiu o real e a fantasia.
O trumpismo terá provavelmente um destino que ultrapassará o homem que lhe deu o nome. Inscreve-se numa contestação presente dos dois lados do Atlântico que rejeita o liberalismo e o seu corolário o individualismo.
Quer triunfe o adeus e o Trump e o trumpismo desapareçam sem deixar rasto, quer triunfe o até já adquirindo qualquer forma que seja, da História já ninguém o tira. Por isso mesmo vale a pena usar uma frase dedicada a um dissente doutras horas e doutras cores, que espelha o estado de espírito daqueles que foram obstinadamente leais, quiçá até demasiado – ¡Hasta siempre comandante!