Tudo começou em 2001. Na mediocremente chamada Guerra ao Terror(ismo). Depois dos ataques de 11 de Setembro, que ficarão para sempre gravados nas nossas memórias, os Estados Unidos da América invadiram o Afeganistão. Pouco depois, em 2003, invadiriam o Iraque. Mas 2021 já não dá as mesmas facilidades que 2001 deu. As duas décadas que separam ambas as datas fizeram-nos desembarcar num mundo diferente – a euforia triunfante após a Guerra Fria foi substituída pelo desencantamento da multipolaridade. Passámos do Fim da História de Fukuyama ao Embate das Civilizações de Huntington.

A primeira pergunta é: porquê agora? Porque é que o Afeganistão não foi abandonado mais cedo, em 2011 ou em 2015? A resposta é multifacetada. Primeiro: existia gente, existe ainda suponho eu, que imaginou que a presença ocidental no Afeganistão ia transformar o país numa social-democracia escandinava. Segundo: a máquina de guerra norte-americana continua bem oleada, é hora de a usar noutros cenários, onde mais está em jogo. Terceiro: a república está farta do império.

Esta contraposição entre a república e o império foi defendida por George Friedman. A seu ver o império americano coloca graves problemas à sobrevivência da república americana. O expansionismo imperial constante, o seu apetite voraz e a sua arrogância colocam a república face a forças que não respeitam as suas regras, estando estas sempre preparadas para fazer o que bem lhes apetece. Um dos exemplos de Friedman é o abandono da Declaração de Guerra. Fala especificamente sobre o envolvimento no Vietname durante a Guerra Fria. Porém, se o contexto desse mundo bipolar poderia atenuar as críticas de Friedman, a partir de 1989 essa desculpa já não é viável.

Esta dicotomia entre a república e o império tem os seus limites, mas quando ouvimos as recentíssimas declarações de Mike Pompeo na Biblioteca Ronald Reagan não podemos deixar de pensar na dita:

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“Um colapso [dos Estados Unidos] desde dentro é possível. A raça e as fronteiras abertas transformaram-se em alavancas para a Esquerda fomentar desunião social. Imigração sem assimilação, drogas ilícitas, tráfico humano, eleições contestadas, a inflação, transformam-se em ferramentas para desmantelar a nossa república. Naquilo que deve certamente ser uma tentativa de suicídio nacional.”

Pompeo continua fazendo referência a Antonio Gramsci – que pronuncia incorrectamente apesar das suas raízes italianas. Esta ideia ressurge frequentemente em alguns círculos, a ideia do tal marxismo cultural. É verdade que Gramsci se reclamava do marxismo, tendo sido um dos pioneiros do Partido Comunista Italiano. É igualmente verdade que vinha do Sul de Itália, onde as gentes se sentiam colonizadas – com alguma razão – pelo Norte. No entanto, Gramsci opera uma revolução dentro do pensamento marxista ortodoxo, avançando que a verdadeira batalha era a batalha cultural, aquilo que alguns chamam de metapolítica. Para que o comunismo triunfasse era preciso transformar as mentalidades burguesas, era preciso fazer ganhar a cultura proletária – o que quer que isso fosse – sobre a antiga cultura burguesa. Marxismo cultural é um termo impreciso e muitas vezes inapropriado, mas é o termo que singrou. Note-se que o frequentemente chamado marxismo-leninismo também é um termo altamente problemático, Lénine, tal como Gramsci, também teve que se separar parcialmente do marxismo clássico.

Que alguém como Pompeo, em 2021, faça uma referência directa a Gramsci quando alerta para o possível colapso a partir de dentro dos Estados Unidos estamos a chegar a um ponto de não retorno. Um bom exemplo das mudanças produzidas neste século XXI. Em 2001 ninguém com uma posição semelhante faria referência a uma possível guerra civil norte-americana nem a Antonio Gramsci.

Esta retirada norte-americana – acrescente-se também na NATO – está a ser realizada num contexto de grande tensão interna nos Estados Unidos e de esquentamento das relações com a China. Contrariamente ao que muitos pensaram a administração Biden não está a mudar demasiado a postura norte-americana vis-à-vis do gigante asiático. Poderíamos retorquir que Biden não tem os mesmos hábitos que Trump – disparar tweets a torto e a direito e oferecer aos jornalistas pérolas politicamente incorrectas. Teríamos razão. No entanto, isso não significa que as tensões entre a águia e o dragão se tenham amenizado, simplesmente significa que a administração norte-americana voltou a ser mais subtil e formal.

E como a natureza tem horror do vazio – já o dizia Aristóteles há muitos séculos atrás – o espaço abandonado por Washington está prestes a ser preenchido por Pequim. Na parte final de Julho uma delegação dos Talibãs foi recebida pelas autoridades chinesas, naquilo que foi uma reunião simbólica, que serviu mais para os mídia internacionais se preocuparem do que para tratar de assuntos entre a China e o Afeganistão. Aliás, esses assuntos já têm vindo a ser tratados há bastantes meses, através da facilitação providenciada pelo Paquistão – aliado indefectível dos chineses.

Pequim, todavia, não preencherá o espaço da mesma maneira que a América. O interesse em lógicas como mudança de regime ou exportação da democracia está ausente das cabeças chinesas. Elas querem simplesmente parceiros fiéis, as suas cores políticas são irrelevantes. Antanho também na América se pensou assim, senão como explicar o apoio de Reagan aos Talibãs para combater a União Soviética? O Afeganistão é conhecido como o cemitério dos impérios, os que lá entram saem definitivamente comprometidos. Mas a pujança dos Estados Unidos da América continua tremenda, sendo a situação interior bem mais grave do que os problemas externos. O império norte-americano poderia ser a excepção desta regra conhecida tanto por britânicos como por russos, mencionando somente os mais recentes.

Os Talibãs são gente do campo, não se deixam corromper pela vida fácil das cidades. As estruturas político-administrativas montadas pelos citadinos e pelos estrangeiros de nada valerão uma vez que os Talibãs decidam acabar com elas ou utilizá-las para os seus desígnios. Mais do que um afrontamento entre moderados e extremistas o que se passa no Afeganistão é um afrontamento entre uma visão tribal e uma visão nacional. A primeira é leal ao costume, à tribo, aos laços sanguíneos. A segunda é uma visão extremamente eurocêntrica, que foi exportada para o resto do mundo devido, em grande parte, aos impérios coloniais. Se olharmos para o continente africano constatamos que o seu encanto foi aí superior do que nas Índias Orientais.

Os serviços secretos americanos já alertaram que a capital do país, Cabul, cairá entre seis a doze meses depois da retirada total. Estão a ser demasiado optimistas, Cabul poderá cair pura e simplesmente num mês caso os Talibãs pensem sensato fazê-lo rapidamente. A China sabe que os ditos vão voltar a dominar o país, daí terem sido rápidos a cortejá-los. A China não tem qualquer tipo de afinidade com os Talibãs, simplesmente defende os seus interesses, se não fossem os Talibãs seriam outros quaisquer. O perigo seria não tecer laços com uma facção que será determinante na região, bem para lá do próprio país.

A zona que circunda o Golfo Pérsico está a perder relevância. As tropas estão a ser movidas para o Pacífico, Taiwan – que nós nomeámos Formosa outrora – é hoje bem mais relevante do que o Afeganistão. A América, potência talassocrática por excelência, vai atiçar a China onde é mais poderosa, no elemento marinho. Para isso conta com um aliado que foi um temível inimigo, o Japão. Mas isso são outros quinhentos.

O cortejamento chinês aos Talibãs deve ser visto pelo que é, uma tentativa de comprar a neutralidade (e, se possível, a lealdade) de guerreiros aguerridos que podem criar bastantes problemas a qualquer projecto, desde que estejam do lado oposto. É nesse lado que Pequim quer garantir que não estejam, o resto são questões menores. E em Washington, depois da húbris do começo do milénio, volta-se a ler o Lorde Palmerstone: “We have no eternal allies, and we have no perpetual enemies. Our interests are eternal and perpetual, and those interests it is our duty to follow.” Em português – Nós não temos aliados eternos, nem inimigos perpétuos. Os nossos interesses são eternos e perpétuos, e esses interesses é nosso dever segui-los.

O futuro da América é tão incerto como o do Afeganistão, algo que o próprio Gramsci jamais poderia preconizar. Mas estou certo que aconselharia a uma como a outra o mesmo antídoto: pessimismo da inteligência, optimismo da vontade.