É natural que os movimentos e partidos políticos celebrem o seu passado, a sua identidade, os seus símbolos, os seus mártires. Fazem-no todos, à esquerda e à direita, conforme podem e os deixam.

Mas as ideologias, os movimentos, as forças políticas, têm os seus valores e os seus contravalores, valores que encerram apologias e negações, amigos e inimigos, passados a exaltar ou a abominar. Em princípio, um liberal – com mais ou menos iniciativa – valorizará a liberdade de comércio e os impostos baixos acima das taxas alfandegárias e de segurança social, opondo-se à supremacia estatal; um conservador, a unidade da família e a defesa da vida, opondo-se ao aborto, à eutanásia e à institucionalização e instrumentalização de géneros, casamentos e procriações alternativas; um nacionalista preferirá a independência do país, a uma dependência estrangeira, mesmo com vantagens económicas.

Quero com isto dizer que um defensor de Salazar poderia, por exemplo, enaltecer o Estado Novo no plano da defesa da Nação e da exaltação da História ou como Estado de obras e de desenvolvimento económico, mas seria absurdo que enaltecesse Salazar como campeão do pluralismo democrático ou do liberalismo.

Poderá então um partido comunista, e um partido comunista particularmente alinhado com a “experiência soviética”, celebrar-se como “pai da democracia” e das “amplas liberdades democráticas”? Aqui, neste canto da Europa que resiste ainda e sempre à equiparação do comunismo ao nazismo, parece que não só pode como até deve.

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Mas por maior que seja a boa vontade – e não pondo em dúvida a dedicação do PCP à causa da classe operária e da igualdade entre os homens ou até os bons sentimentos e a boa consciência moral dos seus militantes – parece-me difícil se não mesmo impossível não ver como ridícula e absurda a celebração desta agora centenária organização como campeã da liberdade das pessoas e das ideias.

Absurdo e ridículo? Perguntarão alguns. Como, se o ideal comunista permanece vivo e é, ainda e sempre, o da democracia avançada e o da libertação total? Talvez por isso neste centenário, além das bandeiras vermelhas generosamente penduradas por lusas praças e avenidas (com facilidades, ou pelo menos com autorizações, autárquicas), tivessem voltado alguns comentadores a falar de “utopia nunca realizada”. Longe de se mostrarem satisfeitos com as muitas e duradoiras tentativas de realização do imorredoiro ideal, parecem propor que as ignoremos para que se não cesse de tentar torcer o presente até que os amanhãs cantem. Nada, portanto, de errado com a utopia… as tentativas de realização é que lhe terão, eventualmente, ficado aquém.

Mas poderá uma doutrina que divide, com arrojo e simplicidade, a Humanidade em duas classes (começando pela oposição binária mestra, Burguesia-Proletariado, que depois tutela todas as outras – patrões-trabalhadores, latifundiários-camponeses, exploradores-explorados, opressores-oprimidos), uma doutrina que defende que a luta destas duas classes ou destes dois polos é eterna e o motor da História, ser a origem de uma sociedade livre e pacífica? A vitória de uns será inevitavelmente a derrota e a aniquilação dos outros e o lado a abater do binómio estará sempre e irremediavelmente condenado. Para não falar daquilo que não cabe e daqueles que não cabem nessa sofisticada e científica dicotomia (as classes médias, por exemplo, e as muitas e desvairadas realidades e gentes de que se faz a humanidade). Pouco importa: para estes experimentados utópicos, se alguma coisa ou alguém não existe no cânone pura e simplesmente não existe, ou passa a não existir; porque se a utopia é para ser realizada o cânone é para cumprir.

Cem milhões de “inimigos do povo”

Foram muitas e duradoiras as tentativas de realização da generosa utopia. E feitas pelos próprios, por partidos comunistas, seguindo métodos comunistas, de acordo com a vulgata e o cânone comunista e aplaudidas por comunistas. Na Rússia, começou no Inverno de 1917-1918, e acabou mais de 70 anos depois. Começou com uma Guerra Civil, em que aristocratas e burgueses foram eliminados. Os concorrentes liberais-democratas, social-democratas, socialistas, mencheviques, também desapareceram; sempre em nome do sonho, da utopia codificada num manual seguido religiosamente pelos partidos comunistas irmãos – inclusive, pelos camaradas portugueses, que sempre fizeram questão de apoiar a ortodoxia. Depois, já com Estaline já no poder, também o fizeram, em 1941, com o Pacto Germano-Soviético. E chamaram “revisionismo de direita” às críticas de Khruschev a Estaline no XX Congresso; e apoiaram o esmagamento da revolução húngara e a intervenção do Pacto de Varsóvia em Praga, em 1968.

O regime soviético começou por prender e matar os vários “inimigos do povo”, conceito infinitamente elástico que ia da família real russa (incluindo crianças, criados e animais de estimação – até o PAN teria uma palavra de pesar, nem que fosse só pelos cães dos Romanov) aos kulaks, os camponeses que tinham mais de uma vaca. O primeiro Terror foi desencadeado pelo massacre dos reféns, depois do atentado de Fanny Kaplan contra Lenine (Mussolini, lembre-se, não matou ninguém depois dos atentados que sofreu e ainda libertou alguns dos seus autores: mas Mussolini era fascista e não estava escudado pela imorredoira utopia). Ainda no tempo de Lenine, a Tcheca fez mais de um milhão de presos e dezenas de milhares de mortos. Depois da acalmia da NEP, o Terror intensificou-se com Estaline, com a coletivização e o Holomodor – a fome política que matou entre dois a quatro milhões de ucranianos. Mortos intencionalmente, à fome, entre 1932 e 1934, através da “coletivização” que os camponeses, a quem a NEP dera posse e propriedade das terras dos feudais do czarismo, viram como um regresso da Servidão, abolida em 1861… Mas pelo sonho é que vamos.

Há grande discussão sobre o número das vítimas do estalinismo, no quarto de século de poder do Czar Vermelho (1928-1953), mas Robert Conquest, que tem uma excelente monografia sobre a época (The Great Terror – Stalin’s Purge of the Thirties, 1968) fica-se pelos 15 milhões. Há quem aumente, há quem diminua, mas é uma bela soma, por mais que se queira que os amanhãs cantem.

Estaline era uma combinação do despotismo asiático à Ivan, o Terrível (imortalizado por Eisenstein, num filme ideologicamente ambíguo), do centralismo modernizante de Pedro, o Grande, e dos compêndios de Marx, Engels e Lenine que transformou em Vulgata. Era também um leitor atento da grande literatura russa – de Dostoievski, de Tolstoi, de Tchékhov – e gostava particularmente de Westerns e de filmes de gangsters. Era um camponês georgiano inteligente, manhoso, sem barreiras religiosas, éticas ou até de lealdades pessoais, que acreditava que o medo era a grande força agregadora das sociedades e destruidora das resistências; o medo que, realizar a utopia, tinha de ser mantido bem vivo, pelo terror. Foi assim na União Soviética e foi assim, em proporção, na instalação do comunismo na Europa Oriental.

Os comunistas não ganharam nunca uma eleição antes de tomarem o poder. Mesmo na Checoslováquia, quando chegaram aos 38% com Gottwald, em 1947, deram o golpe de Praga em 1948. As mortandades em grande escala repetiram-se na China, com o utópico Mao, no Grande Salto em Frente e na Revolução Cultural. E no Cambodja, com os Kmerhs Vermelhos; e em África, na Etiópia de Mengistu. Chegou-se bem depressa aos tais cem milhões. Para custos de uma utopia nunca realizada, não está mal. E foram só tentativas.

Estes números que não são questionáveis nem questionados talvez sejam reaccionários e fascistas, até porque deixam a perder de vista, em qualidade e quantidade, a repressão dos 48 anos de “fascismo” à portuguesa.

A tentativa de construção do paraíso na terra através do terror, que começou com Lenine e Trotsky e escalou com Estaline, foi denunciada por Khrutschev em 1956, depois da transição 1953-1956, no famoso XX Congresso. Parece que afinal a direcção estava certa mas que não era bem por ali; alguns utópicos pediram desculpa: a realização da utopia seguia dentro de momentos.

Amplas Liberdades de Expressão Artística

Outro aspecto também muito exaltado pelo Partido das “amplas liberdades” é a liberdade de criação literária e artística, dura e implacavelmente sufocada aqui, entre nós, durante “a longa noite fascista”. Nada a ver com o clima de tolerante liberdade vivido na paradisíaca União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Em 1912, no centenário do nascimento de Herzen, Lenine retratara o poeta como um nobre liberal, um precursor do socialismo que percebera que “a dialéctica de Hegel” era “a álgebra da revolução”; alguém que, com Feuerbach, chegara até a evoluir para o materialismo e se entusiasmara com as revoluções de 1848, até que o fracasso o levasse ao cepticismo. Mas enfim, combatera “o monstro”, a monarquia czarista, por isso, apesar de as suas “origens de classe” ou de a sua proveniência “aristocrática e latifundiária” o não terem deixado entender a grandeza do socialismo, Lenine, magnânimo, incluía Herzen no panteão da revolução.

O século anterior fora o século de oiro da Literatura Russa, com Tolstoi, Gogol, Pushkin, Dostoievski, Tchekhov, Bely; e a revolução de Fevereiro de 1917 e a revolução de Outubro trariam, inicialmente, a adesão de muitos intelectuais e escritores. Era a primeira tentativa de realização da utopia.

Mas dos escritores contemporâneos da revolução, muitos acabariam por sair da Rússia – e deste mundo.

Os poetas Aleksander Blok e Vladimir Maiakovski resolveram ficar na pátria da utopia. Blok desiludiu-se e morreu cedo; Maiakovski, depois de defender a Revolução, desiludiu-se também com a escalada censória dos escritores proletários e suicidou-se ou foi suicidado. Outros, como Górki, foram-se adaptando; outros ainda, como Osip Mandelstam, foram mortos nos campos de concentração.

Mandelstam, concebeu o Epigrama de Estaline, em que acusava o Secretário-Geral, “o caucasiano do Kremlin”, de ser responsável pelas fomes que estavam a matar milhões. Disse-o a Boris Pasternak na rua, e Pasternak, assustado, respondeu-lhe: “Eu não ouvi nada. Tu não me disseste nada.” Mas outros ouviram-no e Mandelstam foi denunciado e preso. Pasternak intercedeu por Mandelstam e, um dia, Estaline telefonou-lhe, dizendo-lhe que o caso de Mandelstam “ia ser reexaminado”, que passaria da prisão para o exílio interno. Depois perguntou a Pasternak se era amigo de Mandelstam. Pasternak deu a resposta ambígua que o medo impunha: “Os poetas têm poucos amigos. Geralmente têm inveja uns dos outros”. Estaline foi dizendo que “ele, por um amigo faria tudo…” e perguntou a Pasternak se Mandelstam era um “verdadeiro mestre”. Pasternak disse-lhe que era difícil responder-lhe assim pelo telefone e que preferia fazê-lo pessoalmente. Aí, Estaline desligou bruscamente e Pasternak ligou de volta, assustado; mas o Secretário-Geral “estava ocupado e não podia atender”.

Estaline sabia que a dúvida, a imprevisibilidade e a arbitrariedade eram parte integrante do terror e parecia divertir-se com isso. Mas apreciava alguns escritores seus contemporâneos – por sinal, alguns dos melhores, – e poupou-os, mantendo-os sempre em estado de alerta. Também telefonara uma vez a Michail Bulgakov, que pedira para emigrar por não conseguir sobreviver na Rússia, e dissuadira-o de o fazer, arranjando-lhe emprego.

Pasternak que ficara na Rússia depois da Revolução e que ao contrário de muitos das suas relações sobreviveria, recusara-se assinar uma petição da União dos Escritores Soviéticos para a execução de militares na “Grande Purga”. O Comissariado do Povo vigiava-o, mas nunca o chegaram a prender. Estaline gostava da sua poesia e ao ver o seu nome numa lista de condenados à morte por execução, terá dito: “Deixem esse santo doido em paz”. E deixaram.

Com a morte de Estaline, e depois de um interregno, Khrushchev tornou-se Secretário-Geral e moderou o Terror. Baixou a taxa de ocupação do Goulag e os presos políticos passaram a ser internados em hospícios. Mas não mudou tudo.

Em 1956, no ano do degelo de Khrutschev, Pasternak acabou O Doutor Jivago, o seu primeiro e único romance; mas a obra foi considerada “antissoviética” e a sua publicação não foi autorizada. O manuscrito saiu secretamente para o exterior e, apesar da pressão dos comunistas russos, acabou por ser publicado em Itália por Feltrinelli e depois publicado e traduzido por todo o Ocidente. Pasternak ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 1958.

O Doutor Jivago, popularizado pelo filme de David Lean, além de ser um grande romance – como Margarida e o Mestre, de Bulgakov, ou a trilogia da Roda Vermelha, de Soljenitsyne – não é propriamente um panfleto anti-soviético. Limita-se a falar do Homem, ou de um homem, nas suas errâncias, as errâncias de qualquer Ulisses antigo e moderno, navegando pelo mar da vida, entre duas mulheres, duas paixões, entre fés, entre dúvidas. Mas passa-se na Rússia Soviética do século XX e por não ser suficientemente dicotómico ou apologético e se mover entre ambiguidades, peca por omissão, por desvio do cânone estabelecido pelo Primeiro Congresso da União dos Escritores Soviéticos, em 1934; um cânone que, afinal, passado que estaria o terror e já com Kruschev, ainda vigorava. E as directivas dos “escritores soviéticos unidos” eram claras:

O Realismo Socialista é, não apenas o conhecimento da realidade como ela é, mas também o conhecimento da direcção que segue. E segue para o socialismo, dirige-se para a vitória do proletariado internacional. Uma obra de arte criada por um socialista realista é, portanto, a que mostra o caminho e o destino inexorável desse conflito e dessa contradição, os identifica na vida e os reflecte no resultado do seu trabalho.

Estes “escritores soviéticos unidos”, verdadeiros pais das amplas liberdades e da democracia, eram os mesmos que faziam petições a favor do fuzilamento “de militares desviacionistas”, sempre incansáveis, nas suas muitas tentativas de aplanar o caminho para o Socialismo e para a Vitória Final.