O Governo acaba de tornar definitiva uma orientação aplicada pela primeira vez em 2020, por força das restrições devidas ao combate à pandemia por Covid-19: a possibilidade de diversos atos jurídicos poderem ser praticados à distância, isto é, sem exigência presencial dos agentes envolvidos.

Atos como escrituras de imóveis (contratos de compra e venda, permuta, de usufruto, de uso e habitação, hipotecas), doações, autenticação de documentos, reconhecimento de assinaturas, habilitações de herdeiros, repúdio de herança, constituição de propriedade horizontal e divisão de coisa comum, entre outros, fazem parte do diploma aprovado no dia 22 de julho, em Conselho de Ministros.

Na prática, estes chamados “atos autênticos”, até agora realizados perante um profissional (advogados, solicitadores, notários, conservadores e oficiais de registos ou, no estrangeiro, agentes consulares portugueses), passam a poder ser feitos sem que os interessados tenham de ser obrigados a, consoante os casos, estar fisicamente presentes na conservatória, no notário ou no escritório do seu advogado ou solicitador.

Riscos associados à contratação eletrónica

Apesar de nada ter contra a evolução tecnológica, sobretudo aquela que permite, por exemplo, diminuir a burocracia e os tempos da Justiça (tema a que me dedicarei em próximo artigo), há questões complexas que se levantam com esta nova prática. É que, à distância e na ausência das partes será mais difícil, senão mesmo impossível, para a Entidade Autenticadora garantir um conjunto de premissas, para mim, indispensáveis.

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Vejamos quais:

  1. Identidade e legitimidade das partes – apesar de a assinatura digital estar associada ao documento de identificação, que funciona como instrumento de certeza jurídica, certo é que, em caso de furto ou apropriação indevida, pode potenciar casos de usurpação de identidade, tanto mais graves se pensarmos que estão em causa negócios jurídicos envolvendo imóveis. Este risco também é agravado pelo facto de, atualmente, os cartões de cidadão serem enviados pelo correio, tal como os respetivos códigos.
  2. Ausência de perturbações da formação da vontade das partes, nomeadamente, por erro, coação e incapacidade acidental. Todas as situações que afastam a vontade livre e esclarecida são facilmente percetíveis na presença das partes, mas aparecem camufladas e potenciadas pela distância. Ou seja, é praticamente impossível detetar situações de coação (física e psicológica) e muito difícil detetar uma situação de incapacidade acidental. Assim, de pouco servirá a ressalva de que a entidade pode recusar-se a celebrar o ato, caso detete uma destas situações. A questão é como detetar estas situações à distância e por simples (e por vezes de má qualidade) videoconferência, para mais, com o total desconhecimento de quem se encontra em sala com as partes, situações que, presencialmente, dificilmente ocorreriam ou passariam despercebidas.
  3. Garantia de que não estamos perante um negócio usurário com a total desproteção dos mais frágeis e dependentes, como idosos, pessoas em situação de dependência, vítimas de violência doméstica, iletrados, etc. Estas situações, que são gritantes presencialmente, escondem-se facilmente atrás das câmaras.
  4. Aspetos práticos – a lista de dúvidas estende-se por outras questões como a determinação das normas que regulam o contrato, do foro competente em caso de litígio entre as partes, da proteção de dados dos envolvidos, da autenticidade dos documentos apresentados, etc.
  5. Garantia do acompanhamento jurídico – por último, mas muito importante, um tema que me é caro: caso uma das partes esteja a ser acompanhada por um advogado, como garantir a sua presença, bem como o total acesso ao seu constituinte, em privado e a todo o tempo?

Em suma, com o objetivo de simplificar, não estaremos a complicar o que já era um processo simplificado, trazendo a incerteza para onde antes ela não tinha assento, e logo para um campo que mexe com o estado das pessoas ou com aquele que é, muitas vezes, o “negócio da vida” da maioria delas – o do seu imóvel? Muitas questões para reflexão e às quais, a seu tempo, conto voltar.