O Amigo é moderno, tem fortes sentimentos pró-internéticos, lê jornais online, opina nas redes, surfa nas ondas da informação consultando artigos, seguindo links? Ora bem, então já milhares de vezes disse “sim”, ou mais provavelmente “yes”, ao aviso de que aquele sítio que quer visitar utiliza cookies e se preocupa com a sua segurança. Cookies não sabe bem o que sejam, nem quer saber, e faz muito bem; e ao extenso palavreado em que o dono do sítio avisa para isto e aquilo sempre se poupou – senão, em vez de ter acesso ao que quer ler, perdia tempo com vacuidades. E, para proteger a sua reserva de não sei quê, não lia nada, o que aliás nove vezes em cada dez é efectivamente o recomendável, mas a gente não sabe adiantadamente.

A burocracia é assim: ao serviço de grandes princípios, impondo obrigações a quem produz seja o que for, estabelecendo procedimentos crescentemente minuciosos, e esgotando-se no cultivo da sua própria existência, cujo fim já ninguém lembra, a começar pelos burocratas.

De longe em longe, descobre-se com espanto que a estrutura pública criada para proteger ou alcançar um bem ou não serve para nada ou é deletéria; e reclama-se o rolar de cabeças, procurando com ardor um peito onde pendurar a medalha da execração pública.

Este o caso Navalny. Não houve magistrado da opinião que não viesse crucificar Medina (vejamos, por todos, o senador António Barreto), por se ter descoberto esta coisa extraordinária: o exercício do direito de manifestação, que a Constituição consagra, está assegurado, mas a Câmara Municipal de Lisboa certifica-se de que a vida de quem tiver interesse, e poder, em castigar os promotores das manifestações, fique facilitada. Incluindo autoridades estrangeiras, sem discriminação de regimes (facto ao qual, sem razão, a comunicação social atribui grande importância, como se o problema fosse a destrinça entre regimes “bons” e “maus” e não a subserviência a poderes alienígenas).

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Ou seja, os opinantes (com a excepção, felizmente anódina, deste Vosso criado) consagram o princípio da responsabilidade objectiva: Medina, se não sabia, devia saber; e a respeitabilidade do órgão, no caso a Câmara, fica restaurada se o seu representante máximo cair abaixo do cavalo. O que, incidentalmente, dá jeito a quem lhe cobice o lugar e fornece uma excelente arma de arremesso político: estão a ver, estão a ver o que sucede quando são estas nódoas a liderar?

O saudoso Jorge Coelho (saudoso para mim, que lhe apreciava a manha, a variante idiossincrática do português em que se exprimia, e a evidência viva e transparente da condição de socialista exemplar, responsável pela inevitabilidade do nosso atraso relativo) é erigido como exemplo a seguir, por se ter demitido porque uma ponte caiu. Exemplo aliás não inédito, já muito antes dele se havia demitido o igualmente ministro Walter Rosa, por um motivo em que a culpa própria era ainda mais ténue. Mas acaso a demissão contribuiu, mesmo que remotamente, para mudanças de procedimentos que, com eles, não teriam sido possíveis?

Que fique claro: Fernando Medina não é presidente da Câmara no mesmo sentido em que o são os de Santo Tirso ou Freixo de Espada à Cinta. Não o é ele, como não eram António Costa ou Jorge Sampaio, duas fortíssimas personalidades de exaltante destino que deixaram na Câmara a memória da sua perfeita inutilidade.

O lugar é encarado como um estágio para voos mais altos, o que lisonjeia a vaidade do eleitor local, que imagina viver numa região que o resto do país deve gratificar com impostos, desvelo e respeito; o quadro pletórico de funcionários, ao qual há que somar os da floresta de empresas municipais, não tem nenhuma relação com as necessidades do município, e toda a ver com clientelas partidárias e tráficos de influências sortidos; e é provável que Medina tenha algumas ideias sobre urbanismo, espaços verdes, habitação, estacionamento, circulação automóvel, licenciamento da construção, segurança, esgotos e o mais de que se deve ocupar uma Câmara, mas seguro que invariavelmente naquela cabeça ovoide convivem apenas as banalidades da moda da gestão autárquica moderninha com os interesses do partido, do seu futuro político, e da sua imagem pública como comentador residente nas tevês, onde se alivia da vulgata socialista e europeísta para a gestão da coisa pública e os problemas da contemporaneidade.

Mas a patente mediocridade da personagem (cuja demonstração não cabe aqui, e seria aliás inútil – quem sobre a matéria tem dúvidas não a aceitaria, por ter a cabeça cheia dos mesmos disparates que afligem a figura) não é o que explica a inacreditável comunicação às embaixadas do nome dos inimigos dos regimes respectivos: nenhum presidente de Câmara pode estar ao corrente do que se passa em serviços elefantíacos, a menos que tenha a preocupação deliberada de fiscalizar desempenhos, fazer análises de custo/benefício, contemplar reduções, promover eficiências, cercear competências, rever atribuições, encerrar “serviços”. Em suma, arranjar inimigos: todas as carreiras políticas bem-sucedidas o são, há mais de quarenta anos, para quem expande o Estado, promove clientelas ou ao menos as mantém, e acrescenta o seu tijolo ao edifício do intervencionismo. Nas falências (vamos em três) há um contrariado inverter ou estancar do processo; e, passada a tormenta, volta-se ao mesmo, isto é, o PS volta ao mesmo, que lhe está na natureza e no instinto de sobrevivência. Os responsáveis sabem bem que o eleitor médio acha que o Estado são os outros, de modo que exigir mais e mais está na ordem natural das coisas, como está prometer mais e mais e, claro, cumprir uma parte do prometido.

Um pormenor que passou despercebido foi que a situação ficou ainda pior a partir da entrada em vigor de uma lei qualquer sobre protecção de dados, que foi interpretada ou aplicada assim e deveria ter sido assado. E como existe uma Comissão Nacional de Protecção de Dados fui ver para que serve e vim rendido. Quão útil e necessária, meu Deus; e um pouco cara também – à volta de um milhão e oitocentos mil euros por ano. Tem sete elementos, cinco Unidades de qualquer coisa e um número de funcionários que não pude apurar. É de prever que daqui a uns anos, de unidades, exista pelo menos uma dúzia, o orçamento se dê ao respeito tendo sido multiplicado por três, e haja uma adequada quantidade de vice-presidentes, dado que aparentemente a actual se encontra numa situação de solidão pouco compatível com a dignidade do lugar. Até porque a própria Câmara, ao que diz um jornal, tem adstritos a estas importantes funções 213 funcionários, e mal se entende que o organismo de cúpula não tenha pelo menos dez vezes mais.

Pergunta-se:

Medina merece ser torrado pela Oposição, a na câmara e a no país?

Medina deve demitir-se?

A demissão do funcionário que superintendia na trapalhada justifica-se?

Este atentado ao Estado de Direito terá consequências?

E responde-se, pela mesma ordem:

Merece: a comunicação dos nomes e endereços de manifestantes aos titulares dos interesses que as manifestações ofendem é um claro escarro na Constituição; e o papel das oposições não é, ao contrário do que acredita o indescritível Rio, fazer espargatas de raciocínio para diluir responsabilidades, é combater de faca nos dentes as falhas de quem está, tenha ou não culpa. Moedas, quando acusa Medina de ser “cúmplice” de Putin pode, retoricamente, exagerar, mas tem razão no sentido de que, objectivamente, é essa a consequência das informações. As restantes oposições só pecam por se concentrarem no pobre Medina (que, coitado, não tem arcaboiço para que mereça se lhe discutam as ideias) como se, removido o espécime, alguma coisa de substancial mudasse. Mas não: o incidente poderia perfeitamente ter tido lugar com Costa ou Sampaio, ainda que estes dois beneficiassem do entusiástico apoio da comunicação social, que sempre os passeou num andor.

Do ponto de vista do interesse público, a demissão não tem utilidade: virá outra nulidade das coudelarias do PS para o substituir; introduz-se um elemento de imprevisibilidade nas carreiras políticas, que ficam a depender de acasos desafortunados; talvez Medina perdesse pontos na guerra surda dentro do PS por lugares, sem que porém os seus concorrentes sejam presuntivamente melhores, e ainda com o benefício da vitimização para o próprio, que já tem de seu natural assinaláveis competências como choramingão; e reforça-se a inimputabilidade das burocracias.

O funcionário demitido não pode razoavelmente dizer que ignorava o processo. E como, que se saiba, não alertou os seus superiores para a prática de uma clamorosa ilegalidade (pelo contrário: Medina alega ignorância e eu acredito), resta que a porta da rua é a serventia que lhe convém. Até para sinalizar a todos os funcionários que, para a prática de ilegalidades, são necessárias ordens expressas e, se elas existirem, denúncias.

O Estado de Direito interessa muito a quem tenha ideias consistentes sobre a vida em comunidade, o progresso, o país, e a importância das liberdades que importa proteger e que são sobretudo as que defendem o indivíduo desalinhado ou vítima de abusos, em particular por parte do Estado. Ou seja, interessa a uma minoria: a maioria quer saber do ordenado, da pensão de reforma, da progressão na carreira e da igualdade, entendida como o combate aos ricos, que, se desaparecessem de vez, permitiriam que se acabasse com os pobres, os quais não há maneira de desaparecerem, e nos transformariam em remediados, que nos dias de boa disposição alguns de nós já acham que somos.

Este caso só ganhou relevo porque o exercício do direito de manifestação (que absolutamente respeito) é sobretudo coisa de moços com acne (isto é, bloquistas), empresários de causas, comunistas e soldados de bandeiras. E, do lado direito do espectro, porque o cadeirão de Medina dava jeito, nem que fosse só pelo valor simbólico de expulsar um dos corifeus patéticos da Situação.  O resto da opinião pública está muito mais interessada na Selecção, como Marcelo bem sabe. Donde, não senhor, de consequências zero.