para o António
Em que fuga pensaria Erich Auerbach quando, em Agosto de 36, naquele fogo lento e demencial de uma Alemanha irreconhecível, se viu impedido de continuar a ensinar, na Universidade de Marburg, as tensões entre idiomas, imagens, ecos, figuras? Atormentá-lo-ia já a ideia de a nossa fugaz experiência humana frequentemente projectar – melhor, traduzir (literalmente, transportar) – arcaicos contornos de uma desconhecida silhueta subitamente familiar afinal? A de o nosso canto entretecer primordiais reverberações cuja melodia – remota e quase imperceptível – descobrimos com espanto saber de cor? E que fuga seria a dele quando, arrumadas as palavras e as malas de uma certa moderada maneira, recebeu em troca a incómoda sensação de, sob uma presumivelmente volúvel superfície das coisas, aquilo já ter acontecido a outros? A de Eneias? A de Jonas?
Por isso, instalado já em Istambul, donde sairia apenas nos anos 50 para assumir uma cátedra em Yale, talvez não tenha conseguido evitar recordar essas outras fugas. Quando um lascivo Zeus, por exemplo, em mais uma vã tentativa de se furtar aos proverbiais ciúmes da esposa, transformou uma das suas conquistas, Io, numa novilha branca que Hera, despeitada e desconfiada, reclamou para si e que colocou sob a apertada vigilância de Argos. Libertada por Hermes, Hera ordenou que um moscardo continuamente a atormentasse durante a fuga para o Egipto, vendo-se a infeliz novilha obrigada a atravessar a nado as iridescentes águas do Bósforo (literalmente, passagem do boi) em cujas margens, séculos mais tarde, este judeu em fuga disporia em círculos concêntricos os cavernosos ecos que dentro das histórias fazem todas as histórias – Mimesis. Representação da Realidade na Literatura Ocidental – lançando os fundamentos do que viria a ser a Literatura Comparada.
Terão sido as particulares circunstâncias da fuga de Auerbach a esboçar no seu espírito a intuição de que a literatura, limitada sempre pelo sentido de realidade de quem escreve, reflecte o dia a dia em toda a sua gravidade? Na verdade, foi sobre a fronteira inconsútil deste judeu versado em Escrituras e filólogo atormentado por Dante que ganharam corpo as duas formas canónicas – distintas, mas complementares – de representar narrativamente a realidade, de a aprisionar num sortilégio verbal.
A primeira – que ele ora chama grega ora homérica – volúvel e histriónica, seduz-nos com a sua coleante variabilidade e ímpetos graciosos, qual destro prestidigitador capaz de trazer tudo, absolutamente tudo – escudos, taças, escravos, batalhas, cicatrizes – para o seu número, para a sua história. O espantoso canto do mundo torna-se por isso luminoso – tudo pode ser narrado, conhecido – em deslumbrados ritmos, sôfregas enumerações, símiles imprevistos.
A segunda, de matriz hebraica – lacónica e intermitente – faz justamente dos hiatos e das omissões a sua improvável forma de progressão; cultiva um registo ósseo e despojado, enxertado, afirmava Auerbach, no próprio conceito judaico daquele Deus que se manifesta na sarça – fugidio, inapreensível – antepassado imediato do reconhecimento pessimista de que o mundo das coisas não pode ser verdadeiramente conhecido porque, tal como o próprio Deus, não pode ser dito.
Para o exemplificar, Auerbach recorre ao episódio do sacrifício de Isaac, embora as agónicas lacunas da narração do assassinato de Abel me pareçam mais ilustrativas: após Deus ter olhado favoravelmente para o sacrifício de Abel e ignorado o de Caim, dizem as Escrituras que o seu rosto se abateu, caiu, e a ignomínia obscena (literalmente, fora de cena, fora de palco) de um fratricídio precipita-se num versículo – “E Caim disse a Abel, seu irmão” – interrompido, sem continuação. Tão inefável é uma mão erguida contra o seu irmão que as Escrituras hebraicas não registam as palavras de Caim. No final daquela frase, apenas o nada, o negrume de um abismo, de um hiato sujo e sombrio onde o mal, incubado em rostos caídos, mata desde então a esperança e a comunhão, ruminando palavras demasiadamente impensáveis para serem escritas. De tal modo é insuportável a vertigem dessa lacuna e lancinante o pavor dessa fenda que a Septuaginta se sentiu compelida a preenchê-la com uma réplica – “Vamos até ao campo” – que a Vulgata copiou, bem como quase todos os tradutores modernos.
Na mesma semana em que milhares de peregrinos (literalmente, os que atravessam os campos) inundaram a minha cidade com línguas indecifráveis, bandeiras coloridas, longínquas melodias, vínculos de gestos, escolhas e pertenças, a comemoração dos 87 anos da fuga de Erich Auerbach da Alemanha nazi recordou-me que apenas rostos límpidos e erguidos serão capazes de reparar a ferida do silêncio primordial de Caim; que é sobre a atenção à história das histórias que ele estudou – a disputa dos animais malhados, a luta até ao romper da aurora, a inveja pela túnica colorida, a fome e a praga, a agonia e o perdão, a distante obrigação de tudo se repetir – que declina a lenta sombra de se ter um dia escrito que todas as palavras nos foram confiadas para triunfo do desengano; que as margens do Jordão refulgem sob os salgueiros; que erguidas permanecem as altas torres de Sião enquanto em nós viver a necessidade de tudo se alimentar de tudo.
Passando à minha porta um grupo particularmente jovial (literalmente, de Júpiter/Zeus) de jovens perguntei-lhes de onde vinham. Türkiye, responderam eles, literalmente. Enquanto se afastavam, imaginei-me em Istambul, nas margens do Bósforo, sorvendo um forte café turco e aquela certeza de que cruzaremos juntos, todos, aquele campo que Caim não ousou atravessar, rumo ao outro lado das palavras – a alegria, o perdão, a esperança – àquele lugar onde enfim percebamos quantas são as vezes que algo tem de acontecer para que, uma vez acontecido, definitivamente aconteça e o possamos então dizer e recordar e, então sim, narrar a sua vez primeira.
PS: No passado dia 16 de Maio, a nave espacial Juno (Hera), dirigindo-se para Júpiter (Zeus), passou por Io, uma das suas luas, mas não se aproximou. De acordo com a NASA, “é um mundo em constante tormento”. Auerbach sorriu.