Os gregos deram-nos o mito de Narciso, jovem que morre obcecado pelo seu reflexo em águas paradas. História simples, mas que tem muito mais conteúdo metafórico. Todo o funcionamento do narcísico faz-se pela necessidade de receber uma determinada imagem de si, pela qual está obcecado. O problema é que não é a água que funciona como espelho, nem é o objeto espelho que é procurado para obter o desejado reflexo. O narcísico procura as pessoas para lhe darem o que quer. Não viria mal ao mundo se apenas quisessem elogios, mas querem mais. Pior que isso, o reflexo tem que ser controlado de forma a ser agradável e o resultado será, por isso, falso. Todas as imagens que não a pretendida são ignoradas ou destruídas, com alheamento e consequente cristalização na sua visão de si próprio. Por isso são tão vulneráveis à vergonha e tão pouco permeáveis a sentirem culpa.

O narciso poderá estar permanentemente em elação, com manifesta grandiosidade. Assim, quem alinha é mantido e quem não alinha é destruído ou excluído. Mas há narcisos que não são grandiosos, por estarem em fases de depleção. Esses mostram-se vítimas, que seduzem também, até obterem atenção e poder para sentirem a consagração que também ambicionam. A procura é mais insidiosa. Enquanto os grandiosos usam intimidação para sentirem o que querem, estes criam culpa nos seus espelhos. No final, são todos iguais, não tendo obrigações perante ninguém, mas sendo merecedores de tudo e estando o (seu) mundo obrigado perante eles. Assim, pela mentira e manipulação, se chega ao medo, culpa e obrigação, conjugação fabulosa que cria submissão (e doença) nos seus alvos. A superioridade é sua, pela inferiorização dos demais. Afirma-se valor ou diminui-se a competição pela crítica destrutiva ou por passivo-agressividade. Faz-se de forma evidente, ou de forma mais dissimulada, recorrendo-se até a acolherem “debaixo da sua asa” aqueles que lhes possam satisfazer com uma dose de suprimento narcísico. São tóxicos, termo que ganha cada vez mais presença na psicologia “popular”. Criam aversão quando se revelam e a ausência de contacto é a solução para se deixar de ser usado.

Tudo o descrito acima é desgastante na interação individual, mas qual o seu impacto social? Vemos influenciadores que cultivam a sua imagem à custa de informação pouco fidedigna, sobre eventos, serviços, produtos, dietas, ou o que quer que seja. Temos indivíduos em estruturas de decisão que dão prioridade à sua imagem de poder, tendo mais gosto em ser presidentes, administradores ou diretores do que em presidir, administrar ou dirigir. Claro que este comportamento só se torna evidente quando se sentem desafiados, altura em que a sua covardia também se manifesta. Os seguidores ou subalternos submetem-se ou sujeitam-se. A imagem é tudo, o poder é tudo.

É importante conhecer este funcionamento, para proteção pessoal. Quanto mais não seja, para haver alguma garantia de que não estamos a enlouquecer quando alguém diz algo num dia, e faz ou diz o contrário noutro. Definitivamente, não estamos loucos quando lidamos com manipuladores, embora possa parecer.

Mas e a procura de elevação pessoal, de melhorar a autoestima, o amor-próprio? A autoestima é um conceito questionável e dificilmente quantificável. Podemos ter alguém com autoestima, que a sustenta pela cor dos seus olhos ou pelas habilitações académicas, mas que não conseguirá elevar-se perante certas circunstâncias e fazer algo de extraordinário. Mas tem amor-próprio, porque aprendeu assim. E, mesmo assim, a autoestima não se faz pelo reflexo que os outros dão, ou são forçados a dar.

Este é o narcisismo não clínico e é o pior. Não se traduz em disfuncionalidade e é difícil de identificar rapidamente. Estudos realizados nos anos 80, em populações de estudantes, mostraram a presença de um funcionamento narcísico em menos de 30% dessa população. Mais recentemente, um estudo do mesmo tipo encontrou valores superiores a 70%. Não se pretende que este texto seja um tratado científico sobre este assunto, ou até provar a realidade destes números, e por isso não valerá a pena estar a descrever exaustivamente tais publicações. Os estudos referidos também não podem ser extrapolados, mas não deixa de nos pôr a pensar. No presente, em que tanto falamos de imunologia e infeciologia, dizemos que para haver imunidade de grupo, mais de 70% da população deve estar imune. Ora, se dantes poderia haver apenas 30% da população com funcionamento narcísico, a restante população tinha um efeito protetor da sociedade. Os narcisos eram contidos pelo círculo de pessoas que os tolerava. Mas agora, se passarmos a níveis de 70% de narcisismo, coitados dos restantes 30%. Dantes havia alguns indivíduos difíceis de aturar, aversivos. Agora, se calhar, começamos a ser insuportáveis como um todo.

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