O que se tem passado no Sporting é o mais recente exemplo do estado do Estado de Direito. Não se cumprem regras e, pior, nem se percebem quais são, tal é o ruído. O Benfica não está melhor como se soube esta semana, no centro de uma investigação por branqueamento e fraude fiscal.

Depois de se ter andado durante anos a pactuar com a violência nos estádios, depois de se considerar normal o comportamento das claques e envolver até polícia para os escoltar, depois de terem morrido pessoas, chegou-se a este triste espectáculo no Sporting em que venha o diabo e escolha. Cada uma das partes em confronto tem de fingir que desconhece o curriculum de quem apresenta como salvador, para que se salve alguma coisa.

Há anos que o futebol, a banca e os construtores civis são um poder em Portugal que parece meter medo a alguns e mereceu a cumplicidade dos mais variados poderes. A banca foi o centro desse cancro, foi ela que alimentou os clubes praticamente falidos, emprestando mesmo quando não conseguia emprestar a ninguém – basta ver a história das emissões obrigacionistas do Sporting – e criando um país de endividados com crédito à habitação que, do outro lado, tinha os construtores civis. Construtores estes, que como vamos sabendo, também tinham ligações aos clubes ou pagavam chorudas “liberalidades”, como se viu no caso de Ricardo Salgado.

A banca está agora a renascer das cinzas de um fogo que ela própria ateou. A limpeza deveria ter sido mais profunda, não há dúvida. O poder destrutivo da condenação de um banco à falência impediu que se fosse mais longe – muitas vezes esquecemos que ninguém perdeu depósitos em toda esta tempestade. Mas podia-se ter ido um bocadinho mais longe se, entre as elites, não existisse a cumplicidade que nos condena agora a ver estes lamentáveis espectáculos nos dois maiores clubes de futebol de Lisboa. Se as regras tivessem sido seguidas, há muito que Sporting e Benfica tinham sido obrigados a reequilibrar de vez as suas contas. Mas o poder gosta de futebol e pensa que ser cúmplice de más práticas – para dizer o mínimo – dá votos. Não dá, como aliás o demonstrou Rui Rio quando foi presidente da Câmara do Porto e entrou em conflito com o grande e poderoso clube da cidade. O povo, por muito que pareça, não é estúpido.

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Se o Benfica e o Sporting ainda andam nesta vida muito se deve ainda aos bancos e aos poderes político e até judicial. Pode ser que finalmente se inicie a limpeza que levará os dois clubes de Lisboa até ao fundo para renascerem mais saudáveis financeiramente mas também respeitando a lei, a moral e a ética.

O outro pilar deste trio, a construção civil, revela-se mais difícil de combater. Está entranhado na cultura portuguesa desde tempos a que a memória não chega. Foi ela, a construção civil, que com a banca e o poder político nos condenou, a quase todos, a ter casas que não são nossas mas sim dos bancos. No limite, quase podemos admitir que esta reiterada tentação de actuar sobre o mercado do arrendamento, sempre no sentido de destruir os incentivos do investimento para arrendar, parece ter como grande ganhador a banca e os seus negócios circulares baratos e simples de crédito: financia-se o construtor para se financiar o comprador que paga ao construtor que paga à banca.

O tipo de auto-estradas que temos –  próximas de circuitos de corridas, com um número limitado de acessos e isolando as populações por onde passam –; os designados “equipamentos”, que muitas vezes não passam de tijolo e cimento sem vida; e as urbanizações no meio de nada ou em zonas que deviam ser protegidas, nem que fosse com baixa densidade de construção. São tudo exemplos do poder das empresas de construção civil que se cruza com a banca e, em parte, com o futebol.

A grande crise que nos assolou apenas em parte corrigiu estas cumplicidades que nos condenam a colocar dinheiro onde ele é menos produtivo. O que se está a passar no Sporting e no Benfica é, se os poderes assim o permitirem, mais um contributo para se deixar de fingir que é viável o que é inviável, para se mostrar que as regras são para cumprir. A destruição pode ser criativa. E não temos de nos condenar à desgraça do subdesenvolvimento para sempre.