Depois de meses longe dos holofotes por causa dos efeitos e da resposta ao coronavírus, o Brexit está de volta. E pelas piores razões. Na quarta-feira o ministro Brandon Lewis, Secretário de Estado para a Irlanda do Norte, admitiu finalmente no Parlamento, após dias de especulação e uma demissão no gabinete do primeiro-ministro, que o Reino Unido poderá vir a incumprir alguns aspetos “específicos” e “limitados” do acordo de saída que foi assinado com a União Europeia. Mas talvez mais surpreendente é que no mesmo dia, com Michel Barnier em Londres para tentar negociar os últimos pontos que faltam para chegar a um acordo comercial, nomeadamente os subsídios do Estado, o Reino Unido declarou que seguirá a partir de janeiro de 2021 as regras da OMC, muito mais permissivas do que as regras da UE, relativamente a auxílios de Estado.

A primeira decisão é, apesar de arriscada, compreensível até certo ponto. O Governo britânico pretende eliminar a burocracia recém-criada para o comércio entre a Irlanda do Norte e o resto do Reino Unido e decidir unilateralmente sobre os bens do Reino Unido que seriam sujeitos a tarifas da UE na Irlanda do Norte, ao arrepio do Tratado que assinou no final do ano passado. A situação especial da Irlanda do Norte sempre foi um ponto de contenda. Por um lado, uma mudança significativa na liberdade de movimento de bens e de pessoas na fronteira com a Irlanda arrisca a comprometer o acordo de Sexta-feira Santa que pôs fim a décadas de violência. Por outro, o Reino Unido sempre argumentou que não permitiria intromissões na sua integridade territorial e com esta medida visa afirmar na prática esse princípio ainda que arrisque um maior descontentamento social e até, no limite, violência na Irlanda do Norte.

Já o anúncio sobre os auxílios de Estado é mais difícil de compreender. Com esta decisão, o Governo parece estar a renegar a tradição de liberalismo económico dos últimos quarenta anos. Mas sobretudo é questionável que as limitações às ajudas de Estado sejam importantes para o Governo britânico quando os dados da Comissão Europeia mostram que, entre 2000 e 2018, no Reino Unido foram apenas de 0,2% do PIB, a segunda taxa mais baixa da UE, representando um terço da taxa em França e menos de um quarto da taxa na Alemanha.

O recuo do Governo britânico num tratado internacional e a pressa aparente em torpedear as atuais negociações podem indiciar uma tática negocial, devido ao sucesso na negociação do acordo comercial entre o Reino Unido e o Japão, anunciado na sexta-feira.

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Mas é também um sinal de que está de facto disponível (e talvez até desejoso) de chegar ao final do ano sem qualquer acordo comercial com a UE, nem sequer o mais básico, que seria a eliminação das tarifas. Se for o caso, é um gigantesco tiro no pé. Desde logo porque o recuo num tratado internacional sobre as Irlandas pode comprometer futuros acordos comerciais, sobretudo em regiões onde a comunidade de ascendência irlandesa é influente. Veja-se o caso paradigmático dos Estados Unidos, onde a Presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, veio apressadamente anunciar que os Estados Unidos não assinarão um acordo se a questão irlandesa não ficar resolvida. De qualquer forma, um acordo entre os Estados Unidos e o Reino Unido estará sempre condicionado pelo crescente afastamento dos EUA dos assuntos internacionais, tendência que se manteria até com uma Presidência Biden. Para além do mais, parece estapafúrdio negociar acordos com regiões distantes, o que representa custos comerciais necessariamente mais elevados, deixando para trás um dos maiores mercados mundiais onde o Reino Unido já tem uma quota de mercado considerável.

Mas a posição do Reino Unido é também curiosa porque contraria uma longa tradição de maior liberdade na política de comércio internacional do Reino Unido, especialmente do Partido Conservador. A própria história da construção europeia foi marcada de forma determinante pela intervenção de Margaret Thatcher, quando em 1988 no Colégio da Europa, em Bruges, defendeu uma melhor aplicação das regras do Tratado de Roma que permitissem concluir o mercado único até 1992.

Nas últimas eleições, com o slogan “Get Brexit Done”, o atual primeiro-ministro britânico interpretou bem o desejo da maioria de avançar finalmente para uma normalização das relações com a UE após anos de negociações infrutíferas. Mas os sacrifícios na reputação internacional, o custo de uma eventual saída sem acordo, e a aparente machadada na tradição conservadora poderão resultar numa fatura demasiado pesada para Boris Johnson e para o Partido Conservador nos próximos anos.