Nas últimas décadas – e bem – desenvolveu-se uma consciência pública europeia relativamente à importância do bem-estar animal, que foi sendo acompanhada de produção legislativa. Consequentemente, as normas de produção animal sofreram alterações e no universo dos animais domésticos, aqueles que têm função de companhia, viram reforçado o seu estatuto de proteção.
Se estamos absolutamente de acordo que os animais não são objetos, também devemos estar inequivocamente de acordo que os animais – quaisquer animais – não são humanos. Esta é uma verdade à la Palisse, mas não é demais recordá-la num espaço público e mediático totalmente divorciado do mundo rural e da vida na natureza. A humanização dos animais, ou seja, a sua equiparação a seres humanos, é uma construção artificial e impede qualquer debate sério. Situação diferente é encarar os animais com humanidade, ou seja, com inteligência. Igualmente, é importante, e necessário, que se faça uma clara distinção entre animais de companhia, animais de produção e animais selvagens.
O crescente divórcio entre o mundo da cidade e o mundo rural e da natureza prejudica um debate fundamental, que tanto precisa de sensibilidade quanto precisa de bom-senso. O debate público, infelizmente, está marcado por um evidente excesso de sensibilidade e por um manifesto défice de bom-senso. Para agudizar mais a coisa, impera um enorme déficit de conhecimento, verdadeiro conhecimento!
Esta polarização condiciona um debate sereno e uma discussão informada. Da mesma forma, a exceção que constituiu o lamentável episódio da Herdade da Torre Bela – na qual foram abatidos animais, numa prática que não pode ser confundida com a caça – não pode ser o ponto de partida para a tomada de decisões extremadas, ideologicamente vincadas e sem qualquer consideração pelo contexto social, económico e ambiental da caça.
Discutir a caça – e o futuro da caça – deve ser um debate tão racional e informado quanto possível. E não pode – em circunstância alguma – estar refém de preconceitos, desde logo, aquele que ignora o papel crucial da caça nas economias e nas comunidades rurais. A caça é uma atividade indissociável do mundo rural, que além de alimentar centenas de milhares de pessoas, desempenha um incontornável papel na vida do país real, a muitas horas e a muitos quilómetros de Lisboa.
Uma vida feita de agricultura, de floresta, de produção animal e sim, também de caça. Uma vida distante da cidade, que muitos não conhecem, mas uma vida que tem o mesmo valor num Estado de Direito democrático e que deve ser merecedora de direitos e de garantias (e também de deveres, claro), por parte dos poderes públicos.
Associar a caça ao conceito de sustentabilidade pressupõe que as dimensões ambiental, social e económica são igualmente consideradas e estão presentes nas soluções. Quem ocupa lugares de decisão tem que, acima de tudo, defender e salvaguardar o interesse público. Este tem que estar acima de convicções pessoais, de interesses particulares e, nos dias de hoje, deve assentar sobretudo na técnica e no conhecimento.
A racionalidade na análise permitirá compreender o inestimável contributo da caça para a preservação da biodiversidade e para a preservação e reintrodução de espécies em Portugal. Do coelho-bravo ao lince-ibérico, da águia imperial ao abutre-preto, são inúmeros os bons exemplos que merecem consideração e reconhecimento públicos. A dimensão pessoal no exercício de funções governativas deve sempre estar subordinada ao interesse público e às funções que solenemente se juraram cumprir.
Limitar a caça ao mero controlo de espécies será sempre – e em qualquer circunstância – uma violação grosseira da defesa do interesse público e, por conseguinte, daquilo que solenemente se jurou cumprir.
Seria ainda um ataque sem precedentes à nossa cultura e à nossa forma de viver. Um ataque sem precedentes a uma parte significativa da sociedade que, no mínimo, merece respeito.
Seria a vitória do extremismo, da intolerância e do sectarismo de ideologias radicais que, sendo livres de professarem as suas crenças, procuram de forma ditatorial impô-las aos restantes concidadãos.
Sim, deve ser possível caçar espécies cujo abate tem uma razão, uma finalidade e isso não faça perigar as suas populações, desde logo não sejam espécies protegidas. Sim, deve ser acautelado que não existe sobre-exploração e que todas as ações devem ser no sentido da gestão racional e sustentável dos recursos cinegéticos. Sim, devemos ter regras, assentes no conhecimento, que beneficiem da investigação, da tecnologia e da inovação. Só assim teremos proprietários rurais empenhados em investirem no seu património e a viverem, ocuparem e a criarem emprego em regiões que tanto dele precisam e onde pouco mais do que a economia cinegética, directa e indirecta, está presente.
Não o considerar, será votar uma grande parte do país a um abandono ainda maior do que ocorre nos dias de hoje. É afastar os proprietários rurais da gestão e conservação dos habitats com base na gestão cinegética e, com isso, condenar ao fracasso todos os bons exemplos de conservação da natureza e promoção da biodiversidade que ocorrem em abundância, e com sucesso, em zonas de caça por todo o interior de Portugal.
As redes sociais não podem mandar no país, tal como um pequeno partido com assento parlamentar não pode mandar no Governo. Nas vésperas de uma importante reunião convocada pelo Governo para auscultar o setor, é importante que a sensibilidade e o bom senso encontrem um ponto de equilíbrio. É na moderação que se constroem pontes e compromissos. Insistir em soluções extremadas, é cavar um fosso ainda maior entre a cidade e o campo, entre as comunidades urbanas e as rurais. É na moderação – com sentido de responsabilidade e a correta ponderação de todos os valores que estão em jogo – que se defende o interesse público.
E este defende-se, pondo sempre as pessoas em primeiro lugar.